Antes…
Antes do antes somos bloco de pedra
Se nascemos, àquele que detém o cinzel nos destinamos
Aos pequenos golpes diários: contratos, telefonemas, juros
Antes pedra, antiguidade e templo, agora forma e obra
A ausência de virtude do escultor nos enfeia
De narizes, bocas e olheiras fundas
Presos em reter um dia a pedra que fomos
Em salas fechadas ao público
Aguardamos a retrospectiva dos artistas menores.
*
Currais concretos
Celebrar a vida e seus horrores
Viver do torrão
Nada há para ser dito em linguagem humana
Amor só é possível o dos passarinhos
Mulheres-gado viajam em caminhões
Olham pelas frestas olhares de transe
Dia após dia alugamos nossa liberdade
(É dentro de mim que me perseguem).
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Ceifa
Chovia a cântaros pássaros do céu
No chão não sabiam ser pássaros
O encantador de fortunas, o rato
Mirava satisfeito seu intento
De fazer chover pássaros.
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Amantes
Nossa infâmia começa cedo
A luz devassa,
A cama bisbilhotada
Os corpos esquartejados
De ontem
Precisamos nos remontar
Já é dia.
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Nanquim
Aprendi com as árvores
A escolher um dia de chuva para tombar
E pôr a culpa no vento
Para que ninguém desconfie
Da minha imensa vontade de cair.
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Antropomancia
Na porta do teatro Colón
Esperam pelas mães as pequenas bailarinas
Todas serão comparadas a mariposas
Entretanto, uma chora sozinha
Pequena porteña
A partir daquele instante soubeste o futuro.
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Jogral vermelho do tempo
Perto de Santa Bárbara do Tugúrio
Bananeiras adornam o asfalto
Na calle Florida um protesto de velhos contra bancos
Em volta da fogueira, gracejos de paronomásias:
Rouxinol, Ho Chi Minh.
Seguem os carros de boi carregados de vermelho
Augusto Nicolás Calderón e José Doroteo Arango
Meninos de confusa origem
Pedem esmola no sinal de trânsito
Prontos a desertar destinos
As fronteiras estabelecem povos
Duvidosas casas estabelecem preços
E duvidosas gentes, poemas
Seguem os carros de boi
Carregados de vermelho
Pela estrada de barro vermelha
Apinhada de gente cansada da História.
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Stravinsky
Agora temos uma casa
Larga e vazia
Uma casa com um único objeto, no centro da sala
{o piano
Uma casa feita para reunirmos o silêncio
Nenhum outro som do mundo
Apenas a contingência do piano
E com o passar do tempo, se no móvel
{habitassem abelhas
Um pequeno ruído nos incomodaria
Por horas, dias, meses resistiríamos em reconhecer
Nossa impontual virtude.
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Consigna
Não contem mais o tempo
E se acaso a polícia os interpelar
Permaneçam eternos.
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Um cão
Sê um cão
Intruso, magro, apartado
Porém, cão
Indiferente a deslouvor e pedra
Inabalável, insistente e tenaz cão
Incomunicável
Recolhido em ser cão
Um cão de pelos áridos
De boca imunda
De olhar desmaiado
Cão.
*
Poemas do livro Currais Concretos, de Marcelo Benini ( Ed. Intermeios – São Paulo, 2018). Quarto livro do poeta que vive em um núcleo rural próximo a Brasília-DF, Brasil. Prefácio do escritor Ronaldo Cagiano. Foto do autor: José Filho.