Autor de mais de cinquenta livros, entre romances, ensaios, manuais, traduções e peças de teatro, este vigoroso peso pesado das letras lusas tem delineado personagens memoráveis – tanto na História como numa história –, tem lançado rotas para nos levar em visita inteligente pelas sete partidas do mundo que o português criou, tem pensado o pensamento da nossa cultura com um alento novo, fresco, à altura dos palatos mais exigentes, e ao tempo acessível às cabecinhas impacientes. E tem dado uma rápida profundidade de Voz ao seu país nas últimas décadas como poucos.
Miguel Real (Lisboa, 1953) é o pseudónimo literário de Luís Martins, escritor, pensador, crítico, professor de Filosofia. A lista das suas obras esgotaria o espaço disponível. Esbocemos apenas alguma coordenada e deixemos que algum título compareça aqui e ali. Tem recebido prémios importantes: Revelação de Ficção da APE/IPLB (1979) por O Outro e o Mesmo; Revelação de Ensaio da APE/IPLB (1995) por Portugal – Ser e Representação; «Ler» do Círculo de Leitores (2000) por A Visão de Túndalo por Eça de Queirós; Fernando Namora (2006) por A Voz da Terra. Paralelamente ao romance e ensaio, vem participando na elaboração de manuais escolares e na adaptação de obras de teatro, estas em colaboração com Filomena Oliveira. Começou a colaborar no Jornal de Letras em 2000 e mantém aí presença regular como crítico literário. É ainda presidente da Assembleia Geral do MIL, Movimento Internacional Lusófono. E é um escritor-pensador que sabe equilibrar-se entre conhecimento e ironia, que sabe escolher temas-chaga, temas-estrela, temas-diamante-em-bruto –e que polidos explica até que resplendecem, seja em romance ou ensaio.
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Carlos Quiroga: Recordo que te fui (re)conhecer num lançamento, as Memórias de Branca Dias, e fiquei encantado –aliás como todas as pessoas ali presentes– com a tua competência, amenidade, sedução também oral, algo que comprovei depois muitas vezes. São os ossos de professor que servem? Até que ponto servem também na escrita?
Miguel Real: Os “ossos” de professor servem para desmistificar um saber erudito e pomposo e pôr o aluno à vontade, mostrando que a filosofia está ali, não à porta da aula, mas dentro dela. Tratar o saber por tu é o trabalho diário do professor, tratar o saber com o respeito escrupuloso da erudição é o trabalho diário do investigador. Tento harmonizar as duas vertentes, como, na escrita, tento harmonizar o entendimento do ensaísta com a sensibilidade do ficcionista.
Já que do professor nasceu o escritor, não resisto aludir a uma tua reconhecível crítica à política da educação em A Ministra. O modelo que educa para a tecnologia sem investir na cultura veio para ficar? Como está hoje em Portugal a expectativa?
M. R: Em Portugal, como na Europa, a tecnocracia vence em toda a linha. Estamos a transformar o professor-educador num técnico especializado em educação. O humanismo, a grande cultura, a ciência pura desapareceram da escola. Com elas desapareceu a sensibilidade estética, o amor à literatura e à música, o desejo de imitar os outros através do teatro, de reproduzir o real pelo desenho e pela pintura. Construímos, hoje, nas nossas escolas, contra os desejos da antiga geração de professores, uma mentalidade burocrata e tecnocrata, de que os alunos deverão um dia libertar-se, revoltando-se. Só falta que o aluno se transforme num cliente!
Se durante séculos o alto pensamento luso estava nos poetas, contigo haverá que revisar o esquema, romancista-pensador que dialoga com a fina-flor deles, e ainda com padres, estatistas, historiadores, em geral evitando grandes erudições. Não há na tua Obra uma intenção pedagógica? Seja romance ou ensaio, não escondes sempre o interesse por colocar em pano de fundo ou foco as grandes questões, os problemas da sociedade e da cultura portuguesas?
M. R: Sim, tens razão, tudo o que escrevo tem a ver com a cultura portuguesa, os seus traços fundamentais, as suas constantes, os seus períodos, a sua actualidade. Do teatro ao romance, passando pelo ensaio SÓ escrevo sobre a cultura portuguesa, detectando nesta, como certamente vós aí na Galiza, uma singularidade específica, não superior nem inferior à da restante Europa, apenas diferente – o sebastianismo, o quinto-império, a saudade, os “estrangeirados”, o totalitarismo (em 100 anos do século XX, Portugal viveu mais de metade em ditadura, se contarmos com os governos de João Franco, Pimenta de Castro e Sidónio Paes), a necessidade que o português tem de amesquinhar o contendor (o canibalismo cultural), e simultaneamente de invejar outros, considerados ilusoriamente superiores (o complexo pombalino). É um povo lírico e desequilibrado, messiânico e resignado, pacífico mas revolucionário (nunca progredimos por reformas, sempre por revoluções).
Foi A Voz da Terra, com o grande reconhecimento de crítica e público que suscitou, o grande pórtico para a consagração em que (acho) se encontra hoje a tua carreira?
M. R: Sim, A Voz da Terra e O Feitiço da Índia, são os dois melhores romances meus (até sair o próximo em 2017). NO ensaio, penso que a Nova Teoria do Mal, a Nova Teoria do Sebastianismo e a Introdução à Cultura Portuguesa. Prova: o número de exemplares vendidos é superior aos dos restantes livros.
Do ensaio O Marquês de Pombal e a Cultura Portuguesa, situado na mesma época do terramoto de 1755, qual seria a lição mais proveitosa relativamente ao dirigismo dos modernos governos?
M. R: O Marquês de Pombal é, em Portugal, o fundador do Estado contemporâneo, da escola napoleónica em Portugal e da nova Universidade, um dos primeiros organizadores da racionalização das forças armadas, o construtor da Justiça através da Lei da Boa Razão, o impulsionador da economia pública através dos monopólios régios e, finalmente, o grande arquitecto do Brasil anterior à independência. Em todas estas vertentes, aplicou uma linha ditatorial, até cruel, contra a antiga alta aristocracia, exercendo um poder tirânico fortíssimo. Tendo vivido quase vinte anos no estrangeiro, entre Londres e Viena, possuía o gravíssimo complexo de que Portugal, pela sua história, tornara-se uma nação inferior, mas todos os dias lutava contra esta situação, gerando uma elite social e política desequilibrada: por um lado, ambiciosa de ser Europa, por outra complexada por o não ser.
A partir de 2003, com aquele romance sobre a fascinante mulher que dera Viana, Branca Dias, passas a escrever simultaneamente um ensaio e um romance. Para evitar filosofar na ficção e ficcionar no ensaio, terás dito…? Para lançar uma sedução cruzada, levar leitores do romance para o ensaio e vice-versa…?
M. R: Não consigo escrever um livro só, preciso de escrever dois ao mesmo tempo. Não sei porquê e não sei se isto não será um defeito. Quando me canso do ensaio (racionalidade), passo para a ficção (sensibilidade, sentimentalidade), quando me canso desta, sigo para o primeiro. No princípio, aproveitava o material sobrante da investigação para o romance, agora não, têm ambos temas e naturezas diferentes. Como disse, não sei porque faço isto. Obriga a uma grande disciplina de escrita e esgoto o cérebro com dois livros em construção, para além dos que ando a ler. Mas – é bastante verdade – sinto grande prazer nesta dupla actividade.
Contudo, colocar no romances uma Bibliografia, um epílogo, adenda, imagens e retratos “que inspiraram o autor” para criar tal ou qual personagem, ou para descrever tal ou qual cena (numerosas por exemplo no O Último Negreiro, 2007, sobre o traficante de escravos Francisco Félix de Sousa), outorgam à ficção uma veracidade extra?
M. R: O romance histórico precisa de factos reais e de fabulação. O resultado será tanto mais vibrante esteticamente quanto mais se harmonizarem estas duas vertentes. Ao quid estético próprio de todo o romance, no histórico soma-se a necessidade de o autor dominar aquele tempo histórico (é o factor conhecimento). Sim, os paratextos de que falaste contribuem para a satisfação da curiosidade do leitor e conferem à ficção um sólido patamar de realidade.
Amores românticos, façanhas individuais e colectivas, poder, dinheiro, guerras, escravos, e da África ao Brasil, de Portugal à Índia: é inesgotável a História que o português criou como fonte de fascinantes histórias?
M. R: Sim, Portugal, e também a Galiza, tem uma história fabulosa, e dela, de cada período, podem extrair-se mil e uma histórias. Estejamos nós, os escritores, os poetas, os romancistas, à altura de tão elevado horizonte. Eu, trabalhando todos os dias, sinto (e sei) que me situo num patamar de qualidade mediana, nem grande escritor, nem medíocre.
Em 2001, com uma bolsa do programa Criar Lusofonia, percorres o itinerário do Padre António Vieira pelo Brasil. Como foi de marcante aquela experiência, tanto no vital como no literário?
M. R: Mudou radicalmente a minha vida, há um Miguel Real antes e outro depois de 2001. Apaixonei-me por Padre A. Vieira e pelo Brasil e durante 10 anos fui lá todos os anos, não raro duas vezes, e escrevi o melhor que sabia sobre a história e a realidade cultural brasileira e, sinceramente, se morresse amanhã, elegeria esses anos como os melhores, mais entusiasmantes e produtivos da minha vida.
Curiosidade onomástica, relacionável com O Feitiço da Índia, romance que coloca em cena três Martins: Luís Martins é já tão ficcional como estes Martins? Miguel Real é já tão real quanto o teu pseudónimo?
M. R: Sim, é um jogo ficcional mas reflecte a natureza profunda da mente humana, como Vieira, Pessoa e Agostinho da Silva viram: nenhum homem consegue ser um só toda a vida. Cada um de nós tem dentro de si, recalcado ou em forma de explosão, muitos de si mesmo. A identidade pessoal única e unicitária é uma necessidade correspondente ao conceito de alma cristã, a sociedade formou-se de modo que nos possamos apresentar como um só e taxamos de loucos os que se afirmam com mais do que uma personalidade. Com a nova sociedade do século XXI, é possível sermos vários no espaço de uma vida.
Milhares de aulas leccionadas e inúmeros livros escritos, com reconhecimento por parte dos pares em ambas as vertentes. Sentes ter atingido o terceiro nível da tua Nova teoria sobre a Felicidade?
M. R: Não, eu sou um escritor e ensaísta mediano. O terceiro nível está reservados para autores geniais como Pessoa, Rosalia de Castro, Picasso, Einstein, Buda…
De tantas personagens que terás estudado ou recriado, quem poderia estimular a felicidade e o entendimento num europeu agora mesmo, Vieira, Pombal, Branca Dias, um traficante de escravos, Vidal Rabelo, Eduardo Lourenço…?
M. R: Eduardo Lourenço, sem dúvida. A sua lucidez, a sua imensa cultura filosófica e literária, a sua sabedoria de filho de camponês das Beiras, a sua peregrinação pela Europa como professor, tudo o qualifica para, lendo-o, nos postarmos com perspicuidade e penetração perante as exigências tecnológicas e filosóficas do nosso tempo.
Antes de abordar uma Nova teoria sobre a Felicidade tinhas lançado a Nova Teoria do Mal, apontando as quatro fontes da desdita, e recentemente o Manifesto em Defesa de uma Morte Livre, um ensaio sobre o delicado tema da eutanásia. Mas no mesmo ano o romance O Último Europeu, que também se liga a um assunto quente. Deixas descansar algo o passado épico para servir-te directamente do presente trágico? É urgente pôr o dedo na chaga, encurtar analogias?
M. R: Sim, tens razão, necessitei, por enquanto, de parar de pensar o passado. O presente é excessivamente apelante para que o não pense. Daí a minha intervenção sobre a eutanásia, que defendo; daí, a necessidade de endireitarmos hoje as veredas sociais antes de desembocarmos num totalitarismo tecnocrata (O Último Europeu); daí a necessidade de pensar o Mal e as suas quatro fontes (a carência económica, a dor física, a angústia psíquica e a morte) e a constatação de que o grande progresso civilizacional duradouro encontra-se nos actos sociais que conseguem repelir aquelas fontes. Mas não se pode extirpar o mal nem o medo.
Como pessoa significada no MIL, achas que estão a ser desaproveitadas possibilidades políticas e económicas dadas pela língua e a cultura? O espírito internacional Lusófono pode vir a tornar-se mais consciente nas próximas décadas?
M. R: Sim, a Lusofonia é, para Portugal, uma das grandes respostas históricas à desorientação cultural vivida pela avalancha de costumes europeus introduzidos abruptamente (menos de 40 anos) no nosso país. É igualmente um modo de resgatarmos o pecado civilizacional da Europa que foi o colonialismo e a destruição das culturas nativas. É possível criar-se uma comunidade lusófona exemplar – onde a Galiza, a fortiori, terá sempre um papel relevante -, na qual os princípios éticos serão prevalecentes relativamente aos interesses económicos e o direito internacional, fundado na Carta dos Direitos Humanos, dominará as relações políticas. Será uma comunidade internacional exemplar para todo o mundo.
Tens dedicado muitas páginas à identidade lusitana e conheces bem o caso da Galiza. No decurso dos complexos viriatino, vieirino, pombalino ou canibalista (A Morte de Portugal, 2007), e ainda que falte espaço para explicar, perdeu-se qualquer hipótese de reencontro? Na tua visão de Portugal e o Futuro, que prognósticos e que desejos deixas para a terra matricial?
M. R: A Galiza é, em certo modo, a mãe de Portugal; o pai, o cristianismo europeu. Pela Galiza chegou-nos a matriz da nossa língua e pela Galiza nos chegou a personalidade base do português: mais emotivo que racional, mais gregário que individualista, mais aventureiro (emigração) que radicado, mais saudoso do que liberto da terra natal, mais comunitário (natureza, animais, paisagem) que industrializador, em suma: mais lírico que científico, mais poético e fantasista que tecnocrata. Obrigado, Galiza, por nos teres feito assim.
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Nota: Esta entrevista foi publicada no número 82 da revista de Biblos Clube de Lectores.
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