Se for um lapso, meu amor
Caminharemos em silêncio
Habituaremos a flor aos lábios
Seremos um tumulto em mudez
Sangraremos a vinha
Seremos dois cordeiros ungidos
E do gelo faremos a nossa ferida
*
Pensar a matéria, quase tocá-la, senti-la. Os dias ágeis deslizam pelos dedos. Pensar a perda. Sabê-la, concebê-la. As mãos antecipam o gesto, a dor é táctil. Como se uma suave melodia se esvanecesse, fico aqui. Há uma despedida suspensa entre nós. Sabemos que o tempo passou, arrepanhou os corpos, fez-se desejada, tornou-se violável. Pensar a pedra e a semente das cinzas a germinar no interior da pele. Há matéria que encerrada num sopro, tem o brilho áureo de uma centelha de luz. A tua voz levada pelo vento, um certo sortilégio arcaico. Tacteia no escuro.
*
A noite inteira, senti que se quebravam coisas, vidros e tábuas, tudo corrompido até ao ínfimo do seu ser. Tudo estilhaçado e arremessado. Os poetas partem tanta loiça… Sente-se a sua luva por entre as sílabas, e os pormenores agitados, atirados de encontro às paredes. Havia por aqui um relógio que ofertei. Um relógio sinuoso, que tocava de hora a hora. Já não o podia escutar. Sempre que chego a casa, tiro o relógio do pulso, deixa de ser importante que horas são. Hoje, excepcionalmente, não fiz. Trago no pulso o relógio e são 7:24h. aqui o tempo não é importante. Cá em casa, está tudo imerso num véu, num novelo transparente. Não é necessário saber que horas são. Mas esta noite, este início de abismo, sinto feroz o meu corpo. A angústia é planetária, perene, como uma súplica que não se apazigua. Coisas houve que estilhacei, deixei-me invadir pelos fármacos, lítio, olanzapina, lorazepam e fluoxetina. Nunca antes, vos tinha falado desta minha componente química. Bipolar, como um sorriso que descai. A noite segue numa ternura implacável. Descer até ao seu âmago como ao canal do rio. Aqui as estrofes são curtas. A linguagem, ineficaz, aqui o meu colo é um rápido x. Há vontades que nos derrubam. Os passos certos para que nos escutem, ouves?
*
Fomos deixadas ao acaso
Nós as raparigas dos pulsos vermelhos
Nós com quem as noites colidiam
E se transformavam num ambíguo pano de fundo
Abrimos fendas nos muros até sangrar o orvalho do seu interior
Andámos descalças sobre os corpos
E a nossa intenção era matar
Deixar morrer essa tatuagem dentro dos ossos
*
Hoje tudo me arrepia e comove. O pássaro nos fios, aqui que estou tão distante de qualquer asa, de qualquer rosto ou árvore. A chuva ausentou-se deste quadro, desta caligrafia, desta indecisão que é sentir o compasso nu da sua trajectória. Que é perder a vida antes desta se consumar. Hoje tudo é volátil e simples. O desalinho da casa, as suas telhas que são a sua cabeça. Que são a sua erupção. Compelem-me os meus sonhos e a minha falta de erudição a estas linhas. Com toda a sua ferrugem redundante. Malgrado este clima instável, por vezes um tímido raio de Sol, rasga a profundidade cinza das nuvens. Lembra-nos que é dele que nos alimentamos e não de palavras. Contudo, ando sem repouso há já várias noites. Uma estalactite de gelo suspende-se do colo branco do tecto do meu quarto. Trata-se da última sílaba que escrevo, a cada dia. Paredes sucessivas que me distanciam de mim. Como se cada palavra fosse definitiva, e eu ficasse a muros com a hibernação das frases e de cada vez que as pronunciasse fosse como se estivesse vazia, e no entanto, ao dizê-las magoasse. Ferisse a cúpula tão magistralmente pintada dessa tua pele em fuga. Insone, movo-me pelo quarto. Sinto a sua atmosfera hostil e feroz. Deixei os versos arrumados no dia anterior. Presos pela última sílaba. Como se fosse um jogo ao qual não pudesse fugir, como se a minha morte dependesse desse último som. E a minha vida fosse esse verso, essa palavra de fumo derradeira, sem a qual eu sucumbisse. Estou hoje na metade do que fui. Uma onomatopeia. Nenhum gesto meu me assegura esse último ditongo.
**
Leonora Rosado, nasceu no concelho de Sintra em 1971. Desde muito cedo revela interesse quer pela leitura assim como pela escrita, poesia, sobretudo. A escrita é a sede que ávida tenta saciar incessantemente em eterno retorno. Insaciedade de Tântalo. Em vertigem constante. Tem publicados doze livros de poesia, Dias Horizontais Noites Assim (2012, Nu Limbo Edições), O Ocaso e as Horas (2013, Nu Limbo Edições), Argila (2014, Nu Limbo Edições), A Voz Subcutânea (2015, Nu Limbo Edições), Impurezas (2016, Temas Originais), Ruptura (2016, Nu Limbo Edições), A Fenda no Sangue ( 2017, Editora Licorne) , O Livro Do Sopro (2017, Editora Licorne) e Fóssil De Água (Corpos Editora, 2018), Trauma (2018, Editora Licorne), Há Ténues Sinais De Cristal Nos Espelhos (2019, Edições Sem Nome, textos de prosa poética) e Pranto De Coral, prosa poética (Editora Licorne, 2019).
Fotografia da autora por Pedro Teixeira Neves.
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