Férias, e a meninada na rua semeando sonhos de rabiola e latas de linha. Cada carretel carrega um longo fio de histórias. Esses dias me lembrei de uma…
Tinha uma menina aqui na vila, a Bel, que o sonho dela era aprender a voar, igual pipa no céu. Pare de teimosia Bel, isso não vai dar certo! Cê ainda vai se machucar! Era o que o povo dizia, pois queriam convencer a menina de parar com essa ideia, achavam que uma hora ela ia se esborrachar no barranco, mas a bendita não dava ouvido pra ninguém. A Bel amarrava uma ponta de corda na gola da camiseta e outra na cintura, enquanto sua amiga, a Ritinha, com outra ponta na mão, picava a mula ribanceira abaixo pra empinar a menina no céu. Coisa delas, né? Mas é que o povo temia em dar besteira. Além disso, o mundo podia tá pegando fogo e elas não tavam nem aí, só pensavam em voar. Um dia, Bel e Ritinha tavam lá com essa de querer encher a boca de nuvem e ninguém deu conta, até que, depois de uma larga ventania, surgiu um fuzuê no final da rua. Pera aí, aconteceu alguma coisa, pera aí, é as menina, pera aí que vou ver…Havia um monte gente em volta, saindo da rua de baixo, subindo na laje, enchendo a pracinha, tudo pra ver o sucedido. E quem perguntava logo era convidado a olhar… óia lá a menina lá… óia lá…Dava pra ver direitinho, o céu tava mais do que azul e a camiseta amarela da Bel parecia um pedaço de sol flutuando pertinho da gente. Meu coração disparou, senti vontade de gritar, mas tive medo dela perder o controle e se esborrachar no chão. Ritinha corria de um lado pro outro, toda serelepe: Deu certo! Deu certo! Ela tá voano! Ela tá voano gente! Na frente da venda do Sêo Pedro o povo não parava de olhar pro alto. O bar ficou vazio, quem tava sentado na calçada se levantou, as famílias acenavam da janela e os mais jovens estalavam os olhos. Ritinha tava sem a corda, escapou da mão dela na hora de descarregar e foi assim que a ventania levou a bendita pro céu. Uma menina-anjo, de braços abertos como um canarinho cantante, era a Bel, menina danada. Parecia que tava subindo mais, feito balão quando pega correnteza de vento, que vai ficando pequenininho e firme. Tá aí desde quando? Ritinha disse que tinha sido agora há pouco, mas que não conseguiu dizer nada quando ela subiu, ficou sem palavras. Só quando o povo começou a se aproximar que Ritinha disse alguma coisa e logo nomearam a Bel de tudo que é jeito: Que ela tava com algum espírito mal e precisava ir na igreja assim que descesse. Que ficar na rua dava nisso, cria asa demais e depois ninguém segura. Que sempre desconfiei que essa menina não batia bem, vê se não anda mais com ela, viu Pedrinho? E depois que a poeira da novidade baixou, alguns começaram a querer dar fim em ver a Bel nadando no mar do céu. Tem que puxar a corda, pra fazer cair, senão a menina não volta. Quem vai dar comida e banho pra essa menina ir pra escola, gente? Se fosse minha filha, dava uma bronca pra parar de ser amostrada. Com todo esse alvoroço, a mãe da menina, Dona Carminha, chegou e ficou de boca aberta de ver sua pequena lá no alto, sabia que era um sonho realizado da menina. Bel tava com aquela sorriso manhoso que só ela tinha, que mostrava quando acabava de comer, ou quando brincava na rua. Depois, parecia que ela tava bocejando e dando com a mão, como se quisesse cochilar e partir. Foi quando uma nuvem se aproximou e no desenho dela dava pra ver direitinho o rosto da vó da menina, Dona Sonia, que Deus a tenha. O povo já tava até cobrando ingresso pra deixar ver de cima da laje. O dono do bar batizou uma pinga com erva de “menina voadora” e um contador de causo pegou a viola, estendeu o chapéu pra moeda e ficou na pracinha cantando “a estória da menina de cabelo de pena”. Teve até quem chamou a polícia pra rodear e perguntar pra mãe do que se tratava aquilo. Mas quando Bel percebeu esse rebuliço, se mandou, sorrindo daquela jeito manhoso dela. O povo ficou sem dizer nada, e a Bel lá, voando e indo embora na nuvem com a cara da Dona Sonia. Aos poucos, o povo foi dispersando, respeitando a despedida da pequena. Uns voltaram pro bar, a juventude foi pra escola e Ritinha já tava amarrando a corda em outra menina. Nas varandas ficaram as roupas estendidas, chorando e sorrindo a partida da Bel. Dona Carminha foi pra casa, ficou com cara de quem se despede pra viajar pra longe. O povo tentou consolar, mas ela se recolheu sem querer prosa.
Um dia encontrei a mãe da menina voadora na venda, dessa vez com um sorriso bonito, e ela me contou que, num sabe se mais alguém percebeu, mas quando Bel entrou no rosto da vó a nuvem se contorceu toda e deu pra ler assim, sem tirar nem por: Eu só quis virar pipa pra fazer vocês olharem pro céu, agora preciso ir. Não se preocupem, tá tudo bem. Assinado: Bel.
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