CONTEMPLAR AS IDEIAS
como quem olha botões de rosa
no tecto do jardim. Num lugar médio
alguns espinhos predestinam-te aos acontecimentos
e ocultam-se num plano profundo as raízes da linguagem.
Ah esplendor de sabedoria.
Mas é o idioma da fome
algoz de todas as dúvidas, que te fustiga.
Enrolas-te nesse destino cruel para a pele sentir o frio
desde o primeiro inverno. É urgente sentir alguma coisa.
Secam as pétalas das flores
e há uma ideia de inverno que perdura
não se sabe se por um instante ou por toda a eternidade.
Não se sabe ainda nada sobre esse imenso frio da ignorância.
*
NOS MAPAS DE OUTRORA
os arrepios não faziam sentido
nem dentro da cabeça nem fora do coração
pois todas as flores se extinguiram
e o metal derretido ocupou o espaço vazio.
Cambaleiam caules negros e corolas fundentes
em fila indiana sinuosa. Esforçam-se por cair
nas tuas mãos mornas de esposa nobre e fiel.
Os teus dedos a tamborilar nas alianças das viúvas.
Os teus silêncios eróticos.
Mas é nas mãos da neve que gelas subitamente
e és de novo anónima na persistência do frio.
*
OUVE-SE A ESFERA DO TEMPO
exuberância da monotonia
pirilampos apagados
mantos de veludo frio
olhos fechados.
Havia um homem a viver aqui, mas morreu. De só.
O contrário de um abandono é a mesma solidão
do movimento dos dedos, da euforia poética
no caderno por estrear, na cabeça por destapar.
Não há homens na biblioteca do coração.
Não há portas nem retratos neste romance de cordel.
Como evitar que o fim de página se torne a génese
da metáfora, se apenas os factos são compreensíveis?
*
UMA DUAS TRÊS PALAVRAS
presas no braço pendente
como se fossem coleiras vazias de cães.
A palavra mais alta roeu o vento, que desiste
e abandona a primavera de uma vez por todas.
Ela chora esse nome vegetal, mas ainda criativo.
Vê-se a instância dominante do silêncio
agora excluído da matriz feminina:
as palavras que sobram são animais machos
alimentam-se da destruição dos argumentos das fêmeas.
Sentimento da linguagem, em três capítulos
reunidos numa antologia de hastes frágeis:
ausência
imperfeição
demagogia.
Uivos perdidos.
*
OUTRAS EXCLAMAÇÕES
acendiam-se nos recantos da primavera:
amores-perfeitos nascidos entre lugares e palavras
onde anteriormente se imaginariam
caudais de pétalas e poemas bonitos.
O tempo acumulado nas margens
era fluente e sensível.
As pedras soltas faziam lembrar
curtas biografias de figuras prestativas
sereias sem domicílio acabadas de chegar
visões surreais de figuras de estilo.
E o longe é igual ao perto, dizes: apenas um ponto.
A redundância da criação é zumbido de beija-flor.
*
DE DENTRO PARA FORA
do preenchido para o vazio
o pensamento perde o seu contorno:
episódio amplamente demonstrativo
de narrativas de causa e efeito sem surpresas
caídas sobre um telhado de sílabas justapostas.
Descrever a amplitude de um silêncio
sem abrir a ideia à presença do excesso, sem prever
uma compreensão anterior à própria compreensão.
Por favor não me fales com os silêncios de outrora.
*
A PUREZA DO ESQUECIMENTO
no tempo dos enigmas da construção do mundo.
Eram manhãs ruidosas, noites que acendiam rastilhos.
Corpos feitos de sinos e badaladas apregoavam futuros
estradas rasgadas nas gargantas e nos ventres.
Mas todos os gestos estavam errados no teu corpo
demasiado lento.
O que nunca se transforma noutra coisa
é o próprio tempo
esse incinerador de todos os instantes.
Tão evidente a brevidade de um momento
tão solene e consumido
com a faca
espetada bem fundo
no coração das coisas ainda vivas.
*
DESPE ESSE VESTIDO DE LANTEJOULAS.
Apagar a chama o ruído o apelo.
Desvia nuvens folhas pedras.
Separa significados das manchas de ferrugem.
É preciso ser uma palavra solitária e cheia de sede
como ensimesmamento ou apenas dor.
A cobra contorcida no fogo rasga-se
levando com ela o teu ordinário vestido de lantejoulas.
Somos tão loucas como a invenção da água
porque temos a mesma cor da noite e da angústia
e cobrimo-nos de escamas impossíveis.
Somos antigas amantes unidas com cola de farinha.
*
NUM OUTRO CONTEXTO SONHADOR
a cena seria sempre a mesma:
gráficos de comparações a preto e branco
por deficiência ou inércia da impressora de emoções.
Gorjeios
brisas de asas
ovos frágeis em ninhos esboroados.
Esperas um sinal da minha existência: e sou
boca de outra cor menos banal do que o vermelho
fonte de versos que acolhe o chamamento
sílaba tântrica na voz do sonho.
Ao longe, um pássaro comum cai do ninho e não voa.
Mas fica o vermelho.
Ficas tu a pairar num verso
essa película de silêncio sobre a tua imaginação.
*
SE FOSSE INVULGAR A OPRESSÃO
esse espírito de vidro
caminharia descalço e desconcertado.
Lá fora a ternura adormece
e tu sais pela porta dos fundos. Ninguém te segue.
Outros sentidos são matéria molhada
pegadas no meu peito recolhido.
Não chores
não corporizes outras tristezas descampadas
sítios que se partem por dentro dos ossos.
É tão banal a dor, essa bengala quebradiça
essa partida sem dizer adeus.
Fica
e falar-te-ei de amor.
**
Adília César reside em Faro. Exerce actividade profissional como educadora de infância e formadora no âmbito da Didáctica das Expressões Artísticas, sendo Mestre em Teatro e Educação pela Universidade do Algarve. Publicou livros de poesia: O que se ergue do fogo (2016); Lugar-Corpo (2017); e O Tempo O Tempo (2019). Tem colaborações dispersas, nomeadamente: LÓGOS – Biblioteca do Tempo, Eufeme, Piolho, Estupida, Debaixo do Bulcão, Enfermaria 6, Nervo, Nova Águia, Iberis, Gazeta de Poesia Inédita, Pa_lavra, A Bacana, Caliban e Tlön, além de ensaios e artigos de opinião. É co-coordenadora da revista literária LÓGOS – Biblioteca do Tempo.
Curadoria de Tiago Alves Costa.