Metamorfose
Estou mudando. Já nada é o mesmo…
Durmo agora nos telhados da cidade
que se estendem sem fim
e são a pele do teu mundo.
Às vezes caminho durante dias
e converso com o pó e as estrelas,
mas quando volto estou tão canso…
E as minhas veias verdes
enraízam no fundo
dos teus olhos tristes.
Já não tenho nada,
deixei tudo atrás.
Tirei os órgãos do meu corpo
para deixar oco às palavras.
Caminho pelo bosque quando sai o sol,
pois é o único lar que me resta.
Também semeei um deserto,
grão a grão, no meu peito.
Vou ao rio cada dia e fito-o longamente
deixando-o desembocar nos meus olhos.
Estou a carregar pedras e a engoli-las
para conhecer também à montanha.
Quero tornar-me universo.
Duas lágrimas
Tu e eu somos dois espelhos enfrentados
jogando, cada um, a quebrar o outro
e há mil milhões de imagens concêntricas
que são todo o nosso futuro e passado.
Já não ficam folhas na árvore da vida…
O tempo cristaliza, arando a nossa pele.
Também congela o inverno a água nas rochas
e toda a dureza da pedra antiga
quebra, sem forças, em beijos de gelo.
Estão a chover sonhos no meu leito
e há vestígios de labirinto nesta ilha
que só os dois partilhamos.
Desejo tanto viver em silêncio,
mas falo, porque este mundo
está tecido com palavras.
E há pessoas a escravizar pessoas
neste mundo.
Eu mesmo sonhei que um fio invisível,
feito do meu desejo,
te atava ao meu futuro.
É por isso que sei que não te amo.
À procura do segredo
O tempo continua a corroer-me os lábios
encarnado em humidade e pele
e já não sei se estou a viver
ou a posar para um Deus transparente.
Continua a procissão noturna à torre
a verter cera no chão do me quarto.
Eu não compreendo o que há em mim
que hipnotiza à gente até este extremo.
Já não gosto de mim mesmo.
Quando estou só, estou só.
O meu corpo resplandece ainda,
mas dentro só há sonhos em ruínas.
Estou-me disfarçando de silêncio,
sem vontade de nada, sem desejos.
Perdido nesta cidade
como Kaváfis na minha.
E quando, derrotado,
desço à raiz do mundo
só encontro um espelho
a palpitar na imensidade.
O tempo da poda
Desculpa, porque vou tensar o ambiente.
O ar, ao meu redor, quebra-se
e tudo adquire um peso estranho.
Agora que já conheço a superfície das coisas
quero afundar no seu significado.
Ao fim, tudo é estritamente o mesmo.
A corrente vai sempre para abaixo
só as pessoas se opõem a ela.
Aprendi muito contemplando o mundo.
Sempre há um oco para deixar-se cair
e a mim já não me preocupa o caminho,
calculei o meu destino há tempo.
Mas, qual é a minha parte da culpa?
Tenho uma vida dourada,
uma tormenta no coração agitado,
um leito roubado ao passado.
Faço o amor sobre lembranças.
Às vezes com a metade é suficiente,
não vou ficar a ver o fim.
Chegou o inverno
a este hemisfério que me entregas.
É o tempo da poda.
Quinta noite em Compostela
Treze mulheres me sonham intensamente
e eu não posso dormir, não me pertenço.
Agora que já conquistei a noite
e me tornei o seu príncipe
nado à volta das luzes
num baile de suor e sombras.
Há música e insetos em trance
orbitando a sua estrela
como antigos dervixes.
E há algo de hipnótico em tudo isto,
como se a vida lateja-se nos círculos
que traçam as vinte e seis montanhas.
Um olho dourado espreita já no horizonte
e o céu inunda-se de plumas rosadas
que flutuam pousadas no silêncio.
e me beijam os olhos cansados.
Uma a uma, morrem as estrelas
na cúpula do meu templo
e é o tempo da cópula
do sol e a lua nos céus.
Então procuro um caminho
que evite os treze vales
e me devolva à eternidade.
O infinito são só dois espelhos enfrentados,
mas o meu reflexo vai-se apagando
e não tenho forças para o alcançar.
Primeira Primavera (Para F.)
A vida é curiosa e sem forma
e eu amo-a quando se disfarça de ti.
E amo-a quando me ataca com tudo,
empuxando-me a algum lugar distante
Como faz o vento com as flores
desta primavera que acaba.
Quero renascer ao teu lado. Agora.
Esquecer todo…
O caminho de volta,
o lugar do que venho,
o caminho.
Estou a fazer origami com o tempo
para ter lembranças com forma
e que ocupem pouco em mim.
O mar é só turquesa.
Os rios deslizam-se só a tua beira
os lábios são só teus.
No ar vibra o teu acorde,
simplificando todo ao meu redor.
As coisas caem quando as soltas
e nós estamos juntos.
E tão singelo como isso.
O tigre
“Quando cavalgas um tigre
não baixas quando tu queres
senão quando quer o tigre”
Provérbio chinês
No crepúsculo começa a vida em mim
e duas borboletas pousam nos meus olhos
como assistindo ao funeral próprio.
Mas quando cruzo, elas alçam o voo
deixando-me em terra e fico só no meu reino.
Erigi colunas infinitas que sustentam os astros
para tornar-me ancora do mundo que conheces,
e quando pensas em mim já não pensas em mim
só esqueces o que em verdade sou, o que temos sido…
Atrás ficam a minha casa da árvore, o meu bosque,
os meus brinquedos . As flores brancas da infância
desfazem-se entre gemidos alheios…
E tu sonhando no meu leito. Sonhando transparente
que estas a sonhar transparente no meu leito.
Adormeço. Cristo e Buda começam a copular
na mesquita azul do meu verso
tornando-o universalmente herege e blasfemo,
mas nunca antes tinha visto tanto amor
nem falara assim o buraco da minha faz.
Agora que o céu rompa e caia sobre mim!
Para que pensas que erigira as colunas?
Lendo o futuro nos ossos do dragão
Está a nascer algo novo entre os meus versos.
Há uma semente tecida com palavras
e medra-me uma árvore na língua
usando a minha existência como raiz.
Há um lago subterrâneo ao pé duma montanha
e o último velho dum povo que morre
profetiza desde o alto o nosso encontro.
Simultaneamente chove, neva e brilha o sol
nos mil céus que tem o mundo.
Sorrio e choro com os meus sete mil milhões de rostos.
No céu dos meus sonhos voam nove dragões livres.
O sol põe -se, quase estático, tornando-os dourados
enquanto me beija uma mulher tão formosa
que penso em ficar para sempre
a viver de olhos fechados.
E contam que esta cidade foi construída
Sobre o cadáver dum dragão branco.
Eu penso que é a metáfora perfeita
do meu desencontro com o mundo.
Na era da hipnose
Há um cavalo a galopar no meu telhado
e o segundo véu apaga o mundo.
Estou no meio duma tormenta de areia
a sorrir-lhe ao meu deserto.
Há seis cordas penduradas do infinito
e cinco eus funambulistas
criam o mundo cantando
canções esquecidas na neve.
-Trabalhas?
-Escrevo um dicionário de sonhos.
Estou jogando a quebrar o silêncio
com a minha guitarra branca
que se derrete em arpejos
de música antiga.
Contemplo as minhas lembranças e
o tempo golpeia-me, inconexo.
Fecho os olhos.
Fora chove.
Da iluminação
Já não lembro o teu rosto,
tampouco a que eu tinha então…
mas éramos tão felizes naquele rio
baixo o sol cansado do verão.
A nossa casa sem móveis.
A nossa cama. Contigo…
Quanto durou aquele tempo!
Tal vez os teus beijos eternos
fossem o fermento dos meus sonhos.
E eu não era mais eu ao teu lado.
Quero dizer-te algo.
Já não consigo sonhar.
Durmo, a tremer, com o coração encolhido
e um vazio imenso no ventre.
Durmo agitado, como a aguardar algo.
Começo a crer que és tu o que aguardo.
Estou cansado de caminhar
na procura duma paz inalcançável…
Algo que encontrei sendo um menino
quando ainda não podia compreender.
Mas, como sobreviver a iluminação?
Eu fui-me degradando pouco a pouco
por medo a não viver tantas coisas…
E agora não lembro o caminho de volta,
o meu lar…
Voltará o verão a estas terras.
Acordarei então as borboletas e as folhas,
lembrarei sorrir e caminhar baixo o céu,
dormir baixo o céu, sem ti.
Mas sempre há alguém ao meu lado,
talvez hipnotizado por estas palavras densas
que me desbordam.
E tu conheces-me.
Sabes que posso conquistar o mundo
só com palavras.
Dizes que nos encontramos tão pronto…
Eu sou a tua iluminação, a iluminação da que falo.
Invadiu-te o medo a não viver tudo.
Dizes que acabarás comigo, que teremos filhos.
Que envelheceremos juntos, para sempre…
Mas eu receio esse futuro.
A idade cegar-te-á, serás surda.
De que servirão então as minhas palavras?
Nascido em Santiago de Compostela em 1994. Aos oito anos foi morar para o campo com a sua família e namorou da natureza. Passou a sua infância brincando ao pé do Pico Sacro, entre livros e imensos campos verdes. Nos últimos anos participou nas obras poéticas Além do silêncio, Galiza e Moçambique numa linguagem e numa sinfonia e no Livro Homenagem a Manuel Maria, assim como em numerosos recitais. No ano de 2016 resultou elegido para formar parte da antologia lusófona Emergente, que selecciona até 12 poetas emergentes de todo o universo lusófono. Em 2017 publica o seu primeiro livro de poesia, O Livro Branco. Um dos poema deste livro, Com o ritmo da chuva, vence o prémio aRi[t]mar ao melhor poema editado em Portugal no 2017.
Curadoria por Tiago Alves Costa.
You might also like
More from Alexandre Brea Rodríguez
Alexandre Brea Rodríguez | REM
Alexandre Brea Rodríguez: poema REM com a colaboração de Álvaro Toimil na parte gráfica do video.
A poesia está morta | Alexandre Brea Rodríguez
Alexandre Brea Rodríguez, nascido em Santiago de Compostela no ano 1994. Graduado em física, atualmente está a realizar o doutoramento …