QUANDO RESPIRAS EU SINTO A IMENSIDÃO DO TEU SONHO DENTRO DE MIM
Teus pulmões estendem tapeçarias frementes em meus ouvidos.
Colossais fios em galope por todo meu corpo.
Indomável reluzente vestimenta de céu & trovão.
Minhas pálpebras estremecem:
o movimento das asas de um pássaro mágico dentro do labirinto.
Teu sonho é um sussurro de rústicos rubis molhando meus lábios.
Meneio meus cabelos:
salamandras dançam hipnotizadas ao som de teus tambores.
Quando tua língua se move, desmesurada víbora,
e meus dedos escavam em busca da chave,
as mil portas do poema ardem.
Minha faiscante raflésia,
quando respiro eu traço um tremor de terra,
na corola sangrenta do teu sonho.
*
Imolação
Dentro dos poemas
os espelhos rosnam
cães açulados
o sangue cintila na jugular
Sou devorada pelas imagens
*
Teia
Francesca Woodman desliza
por dentro das fotografias
com olhos aranhiços
a face sublime suicida
Francesca dança
nua
levita e tece
Penélope suspensa
espera, espreita
de súbito, o rapto
Francesca nos dilacera
*
Oleandro
Percebe como sou
a trama cortada
a fúria oculta ao redor
do tear
A língua sibilando
todas minúcias
o verbo abrindo fendas
nesgas macias de sangue
Palavra engatilhada
onde me tens
lírica pontiaguda
Negro escorpião incandescendo
entre as sendas do corpo taciturno
*
MEDITO SOBRE A LENTIDÃO DOS SENTIDOS
ENQUANTO TUA LETRA MUDA DE LUGAR NO MEU CORPO
Teus vocábulos são lobos vociferando nos vãos de minha vigília.
Negros chacais riscando sílabas em minha cintura.
Percorrendo a cordilheira encarnada de meus cabelos.
O terraço afogueado de meu ventre.
Os precipícios peçonhentos em meu púbis.
Teu letra decifra os mapas secretos,
traçados pelos meus sinais de nascença.
As sílabas matilham-se, em tocaia,
estremecendo os porões da pele,
conduzem-me ao coração do desvario,
devorando as carótidas do real.
O poema é um deus dançando jazz na algibeira do meu delírio.
*
Vortéx
Com audácia
manejar
os gumes da fala
em êxtase
no deserto da lauda
exaurir o sangue
signos em agudo auge
incansável navalha
na retina, exato entalhe
Tensionar a entranha
instaurar o arremate
dar de comer ao verbo
a própria carne
o corpo doado
à tudo o que for delírio,
demolição
este talento obscuro
infernal júbilo
labuta e consumição
*
Garimpo
Que teus lábios busquem sem cessar
em minhas densas e voluptuosas cavernas
o doce luminescente minério
o precioso mel de Vênus nascendo
de um ventre cravejado de beijos
*
Lince
amor sulcado de cólera
energia escura das pedras
anjo e víscera
avança, destroça
a língua aguça
o corpo epilético
da selva
caninos celebram
áurea miséria da carne
buquê de carcaças
*
Lavra
Uma semântica brutal habita meus lábios
a ferocidade das sílabas
pássaros apunhalando as papilas
Uma dança caudalosa, fulva
rumor de ossos
voltagem de vísceras
Estendo os dedos, queimados
uma língua incendiando
os livros que escrevo
*
Talho
salamandras no cio
arranham
as ancas de minha esquizoidia
línguas negras de argila
os hematomas são drusas
ultrametistas
verso violáceo metamorfoseado
na carne da Carmen de Godard
sal, suor, sangue, gritos
agora eu cheiro a feromônio de raflésia
eis o início de um grande amor:
carniça
**
Anna Apolinário (João Pessoa, 1986) Poeta, organizadora do Sarau Selváticas, de autoria feminina, integrante do elenco das Escritoras Suicidas. Autora dos livros Solfejo de Eros (CBJE, 2010), Mistrais (Edições Funesc, 2014), Zarabatana (Editora Patuá, 2016) e Magmáticas Medusas (Editora Cintra/ARC Edições, 2018). Participou da Expo Surrealista “100 años no es nada” na Universidad de Costa Rica e Casa de La Cultura, Costa Rica. Tem poemas publicados nas antologias: As mulheres poetas na literatura brasileira, Volume 3 (Org. Rubens Jardim, 2018), Um girassol nos teus cabelos, poemas para Marielle Franco (Quintal Edições & Mulherio das Letras, 2018), Senhoras Obscenas (Editora Patuá, 2019), Sob a Pele da Língua, Breviário Poético Brasileiro (Editora Cintra, ARC Edições, 2019). Autora Integrante da Edição #126 da Agulha Revista de Cultura: Surrealismo e Jovens Poetas Brasileiros I, Edição Comemorativa do Surrealismo (1919-2019).