DESPEDIDA
Amanhece
e no espreguiçar dos olhos
absorvo a tontura do novo dia.
Ao sair do quarto
atravesso o branco sujo da manhã
e vou tomar café com muito açúcar.
Levo um pastel de Tentúgal para a varanda
e mastigo-o ouvindo as harpas da cidade.
E quando tu chegas de roupão
bebendo o teu cacau
explico-te o horizonte com barcos.
*
Já os oito jantámos juntos
bebemos do mesmo vinho.
Quantas vespas do sol poisarão
nos arbustos altos entre nós
quantos gestos verteremos
no depósito do desencontro?
*
Atormentam-nos os momentos
que com Ela não passamos.
As águas do rio levam a luz do dia
e os cogumelos, próximos de outubro
festejam nos bosques.
Atormentam-nos
os queijos que não comemos
o sabor a alho das açordas
as ácidas pontadas no estômago
que já não conseguimos provocar.
Nos bosques de cogumelos
as crisálidas libertam borboletas
indiferentes a texugos e lebres
que pouco se vêem de tão esquivos.
O mal
é que já não sabemos o que nos atormenta.
O mal é que já não nos atormenta nada.
*
Atrai-me em si jovem senhora
o bom trato que dispensa aos filhos
o saia-casaco feito por medida
a sua corruptível seriedade.
*
Suba pelas coxas as suas meias pretas
desenlace os enfeites do cabelo.
E então, sim
encaminhe-se à vontade
para a tábua dos queijos.
Mas, por favor
pelo caminho solte os pássaros.
De outra forma como poderei gostar de si
ouvindo tantas queixas
ainda que injustas.
*
Dou uma penúltima trinca
no verdadeiro bolo da Teixeira
do aconchegante lanche de domingo.
Já à luz da porta aberta
corrijo as folgas do vestido da mulher.
Afago, um pouco melancólico
os acobreados cabelos da cunhada
e vou-me embora
fazendo de conta que vou às putas
com o Toni Parolo.
*
REENCONTRO
Alisei-lhe a cama
do encorrilhado da noite
tratei-lhe as tranças
da agitação das almofadas
comi duas torradas
das dela, com manteiga,
vi as horas e fui-me embora.
*
Na minha qualidade de avaliador das casas delas
certifiquei-me do bom funcionamento dos estores.
Apreciei o desenho curvo das escadas entre pisos
os reluzentes degraus de sucupira
mas nem tanto os arrebiques a mais do corrimão.
Sei que devia ter prestado outra atenção
aos acabamentos do complexo de higiene
e podia ter-me ocorrido mais cedo
elogiar as colorações da clarabóia. Todavia
tantas casas cansam. E à volta desta
já a noite passeava entre os pinheiros.
Não contava acabar aqui o dia
entre licores de monge
e grossinhas fatias de bolo inglês.
*
Foi melhor ter adormecido
com a cor dos teus olhos
do que com o mel
dos teus lábios.
*
I
Decerto que já te falei da contemporaneidade
e mesmo do brilho dos teus olhos.
Hoje talvez estivesse mais inclinado
exactamente
a falar do brilho dos teus olhos
na vulgar distância
entre o teu queixo e os teus seios
no traço oscilante e perfumado das clavículas
na claridade envergonhada das omoplatas.
II
Da contemporaneidade tu já sabes o que penso
agora talvez comesse qualquer coisa.
Perdão, querida, tens anchovas no armário?
yes!? com alcaparra… it’s wonderful!
vinho, meu amor
vinho pelas gargantas de veludo.
III
Não adormeças logo agora
que eu estava mais fluente e disposto
a falar-te, ainda que de novo, na contemporaneidade
ou não adormeça eu
logo agora
que o teu cabelo se encosta
à suavidade das almofadas
animando o amor do Donald e da Daisy
que, entretanto, já transpuseram
a barreira lisa do pano e do desenho
e se encaminham já para o quarto ao lado.
**
Daniel Maia-Pinto Rodrigues nasceu no Porto, em 1960. Publicou, até à data, dezanove livros (poesia, novela e romance). Está representado em antologias poéticas das principais editoras portuguesas. O seu livro Dióspiro – Poesia Reunida (1977-2007), com selecção e organização de Luís Miguel Queirós e José Carlos Tinoco e com um ensaio de Rui Lage sobre a obra do autor, foi considerado, pela Universidade do Minho, o melhor livro de poesia editado em Portugal no ano de 2007.
Curadoria de Tiago Alves Costa.