Jenny
ela era toda porcelana de terra,
flores predominantes no odor jovem
juventude fabricada
no dinheiro ilegal dos casinos.
era toda ela morangos suculentos
entre as pernas
bolos coreanos em forma de coração
cappuccinos dignos de instagram.
olhos de amêndoa em época de Páscoa
como quem quer comer o corpo e o sangue.
tinha uma altura nobre
e um cabelo livre.
tinha lágrimas de pérolas
desejos em forma de diamantes.
ele queria alguém real,
ela queria um príncipe português
com um intelecto barbudo.
ele queria ler Lu Xun,
ela queria jantar de amêijoas à beira mar.
ele voltou para a terra,
ela cometeu o mais elegante suicídio,
deixando os brincos Chanel no cadáver pendurado na sala de jantar.
*
Dicas para um desempregado
coloca todos os dias o despertador para a mesma hora
e utiliza o sistema linguístico que preferires no silêncio.
tens muitos canais à escolha,
escolhe aquele que te evadir primeiro
sai da cama e sente-te inválido
como a chuva que hoje chove e amanhã não
os dias no calendário que se sucedem
e nada acontece
escreve por graça e escreve de graça
quando não se tem não se gasta
recebe as prestações sociais para te pagarem as compras no Lidl
bebe mais ou menos a mesma quantidade de álcool,
masturba-te durante a tarde
telefona aos teus pais,
verifica se já morreu mais alguém.
procede até ao fim do dia até ao fim da noite,
procede até ao fim.
*
Liberdade
a liberdade é deixar-se estar a meio dos desejos
é uma procura de ardores
uma rua onde Ramos Rosa adiou o amor.
os séculos sucederam-se
no ventre da lenha
onde ardem todas as bandeiras do mundo.
deixa-me na margem do outono
porque a liberdade é cinzenta
como os braços da terra
falta-me procurar a liberdade
na cintura da chuva, no riso da arma.
quero desfiar a voz para encontrar a retórica do medo.
tantas palavras começadas por a: acaso, ação, ator, adultério,
amor
mas eu quero renascer das balas
e trazer-te livre
derramar-te no oceano com o mesmo sangue dos atores,
do adultério e do acaso.
não se ama a liberdade,
bebe-se liberdade
misturada com espumante e terror.
é o rasto da revolta
é o desprezo pelo erro.
hoje liberto-me de ti, amor
e tudo é um acaso gelado,
uma ação livre e miserável.
*
As sextas-feiras
desaparecem em cima da mesa.
depois reaparecem no verão
entretanto passeamos de bicicleta
sobre os significados das coisas
mas os passeios são de domingos.
as sextas-feiras tocam-me a pele
ao de leve
aparecem agregadas ao amor próprio.
as sextas-feiras tristes rastejam
pelo fim da tarde prometendo alívio
assegurando amor e descanso,
esperança tão profunda como os esgotos.
à sexta-feira escrevo o meu nome no selim
da tua bicicleta
pode ser este o fim-de-semana em que me chamas.
há anos que todos os dias são
sextas-feiras.
*
Catedrais Contemporâneas
esta é uma vila com mais de dez milhões de habitantes
são carros e gente e bicicletas
num caos perpétuo.
é certamente uma vila porque as pessoas têm mãos sujas
e expectativas de sobrevivência pelo seu próprio cultivo
da paz interior.
vidas de néon que constantemente atravessam estradas
em direção a catedrais contemporâneas:
os edifícios que tentam chegar a Deus
ou são os donos dos edifícios deuses sem causa?
passa por mim um fantasma global
cheio de violência nómada.
trocamos respirações poluídas.
o outro lado do mundo é igual ao outro lado do mundo.
*
O Centro do Universo 宇宙中心
chamam-lhe O Centro do Universo
mas eu não vejo estrelas,
na verdade, pouco se vê nos dias de junho
para além do sismo cinzento intermitente
por cima destas cabeças estrangeiras.
wudaokou é um sismo diário.
quando as horas me acordam
não reconheço a economia próspera.
ou a cultura milenar,
limito-me a recuperar o fôlego.
queimo-me nas sombras espalhadas ao longo da rua.
procuro dentro de mim os diálogos rasos
com que se escrevem provérbios chineses
“para onde a água escorrer, formar-se-á um canal”
foi assim que os bancos substituíram os hutongs
e os vendedores de rua passaram a existir no telemóvel.
as cinco bocas bebem tantos sonhos
que se tornaram numa embriaguez perpétua
com bicicletas oníricas em direção ao pescoço,
carros por cima dos braços,
cérebros carbonizados no tórax,
dragões de ouro que cospem espuma taoista.
ao longe reluzem as pupilas do imperador,
observam o músculo do fôlego
e jogam mahjong com as nossas vidas.
*
Um homem para junto ao fogo
é no esquecimento que ardes
junto à solidão dos lençóis,
o medo que estremece pela terra
no silêncio menstruado das aves.
gritas a partir do mar báltico,
espero-te junto ao império do meio,
a meio do animal doce que trago no ventre,
de pálpebras coroadas
e pernas abertas para o ouro voluptuoso.
um homem para junto ao fogo mais sujo,
julgo ser eu,
a selvagem sensível,
a posição íntima multiplicada pela memória,
os pedaços de noite que me brilham nos lábios,
a liberdade implacável da fuga.
*
Não podemos ser o mesmo,
porque temos que renovar
as nossas montras interiores
a cada nova estação.
escolhi o tom de veludo típico do verão,
alarguei as ruas para facilitar
a fuga do sol.
os últimos anos foram tardes azuis
mergulhos em mares dourados,
êxtases de saudade partilhada
com outros expositores perdidos.
movemo-nos para a capital europeia
em forma de epopeia
não podemos ser os mesmos
presunçosos, pálidos, ardidos,
ano após ano,
porque trazemos um feto escarlate
na agonia da fala
que oferecemos
às floristas indiferentes
ao crescimento dos prédios.
não nos podemos vender sempre
porque o poder de venda varia,
oscila com o caminho,
sufoca lentamente a criação.
no fim tudo o que podemos expor
é a fratura.
*
Jornada
venho do fundo da primavera,
misturo-me com os poetas
que vivem na memória da montanha.
venho do império da curiosidade,
acompanha-me uma angústia de bambu
e um impulso de pedra.
a viagem existe enorme
dentro de todos os aviões que apanhei
rumo a mim mesma.
na melodia trémula das manhãs
entrego-me sem medo
a todo este esquecimento estrangeiro.
*
Poeta
imagino a dimensão da porta
por onde a beleza te chega
e imagino a paciência
abandonada pelas arestas do dia.
ouvi falar
do Verão pintado
que trazes em torno do rosto.
imagino a cama onde tremem
avisos mudos
e a poeira que se acumula
nas dobradiças da língua.
quero ter um quarto igual ao teu:
uma varanda estéril,
um candelabro de plástico,
um espelho que me humilhe
e um chão indiferente ao desejo.
*
**
Sara F. Costa é natural de Oliveira de Azeméis e reside em Pequim. É mestre em Estudos Interculturais: Português/Chinês pela Universidade do Minho em parceria com a Universidade de Línguas Estrangeiras de Tianjin onde estudou mandarim. Publicou até à data cinco livros de poesia. A sua obra tem sido galardoada em diversos prémios literários nacionais. Foi autora convidada do Festival Internacional de Poesia e Literatura de Istambul 2017 e em 2018 fez parte da organização do Festival Literário de Macau e do Festival Internacional de Literatura entre a China e a União Europeia em Shanghai e Suzhou, China. Tem poemas traduzidos e publicados em mais de sete línguas em várias publicações literárias por todo o mundo. Coordena eventos literários no coletivo artístico internacional sediado em Pequim, Spittoon e fundou o primeiro workshop de poesia da cidade.
Livros publicados:
– A Melancolia das Mãos e Outros Rasgos (Pé de Página editores, 2003);
– Uma Devastação Inteligente (Atelier Editorial, 2008);
– O Sono Extenso (Âncora Editora, 2012);
– O Movimento Impróprio do Mundo (Âncora Editora, 2016)
– A Transfiguração da Fome (Editora Labirinto, 2018)
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