carvalheira do rei
cabanas
lá no alto
eles
comigo o medo
à queda ao golpe ao dano
o incessível adquire a forma de um carvalho.
inseminação artificial
estudar para isto
luva larga além do cotovelo
uma vaca outra
morena marquesa lola
mão immersa nas entranhas
ouvidos surdos aos risos infantis
que ajejam entre os vidros.
a deceção tem a forma de olhar desviado.
escondite
teimudas e em silêncio
ocultam a alegria
acham que não as distingo
os seus corpinhos embebem a cortiça
e afogam-me o dever de mãe
é noite deixai o jogo é noite
a felicidade sucede em forma de carreira.
campo da feira
antes as meninhas
antes as vacas
antes de antes
o cego e os pendelhos
não poder cruzar sem a picada
dos recordos
o abandono atinge-nos em forma de silvalhada.
sempre.
herdeiras à força
ogalhá uma parcelária
que modifique os marcos
e suprima as lembranças
todo é gasto nada rende
a ruína tem a forma de tocão sangrante.
[ talaram a nossa carvalheira do fojo]
muros
duas eram as casas da aldeia com acesso proibido
cas dona anita e cas dona arminda
nada sabíamos dos seus jardins das suas cozinhas
da roupa a clareio no pátio de atrás
duas eram as casas da aldeia com acesso proibido
as duas com heras a decorar altos muros
em rubores encarnados amarelos ruivos formosos
[em verdade pareciam nobres e proporcionados]
e aranhas e cadelas de frade e nespras e medo
impossível rubir e asejar cozinha jardim
roupa a clareio no pátio de atrás
levar furtivamente umas tulipas os seus bulbos
[ninguém mais na aldeia tinha].
chegou um dia
que foram três as casas com acesso proibido
porque pitusa não quis ser menos quis ser dona
e levantou valo alto cimento e bloco
e plantou heras que cresceram e rebordaram
em encarnado amarelo ruivo e venha medo
e desencontro casa fechada espaço vedado
e atrás foi o papá que alçou alto muro
e simulou a desconfiança com pés de hera
amarela encarnada ruiva tóxica hera.
e atrás de papá foi fina batám e foi maribel
e foi virucha e foi luis todas sem dom nem dona
mas com heras velenosas a empeçonhar a aldeia.
a ocultar os muros. altos.
as filhas do maestro
não vamos à erva
as filhas do maestro
vemos passar o trator
máquina agrícola
carro prestes a encher
e guia lola de botana
bata cruzada e pano
braços morenos
esbrancuxadinha mamã
assomada na janela
[que pesa mais de palha
um quilo um quilo de ferro
perguntou o maestro-papá
e a filha que não vai à erva
falou errou corou: o ferro!]
e mamã não têm carta de conduzir
as filhas do maestro
não vamos à erva
e os contos no pátio da escola
ir à erva é um perigo
andam invisíveis as víboras
e botas a mão acolhedora
braçado de pasto no colo
e sentes a picada
dois buratinhos violáceos
[as cabeças das víboras
são sempre triângulo
explica o maestro-papá
gatunos são os olhos
acougo nunca matam]
e a peçonha no corpo
e chuchar e cuspir
e o alívio menos mal
que as filhas do maestro
não vamos à erva.
e vas à erva
sem as filhas do maestro
e cravas a forquita
para evitar cobras
e vem a palha tisnada
em sangue
e não é víbora
na galha ondulante
mas ferida no pé
buraco de parte a parte
e venha e corre
e lá vai o manuel
peito ao ar sangria
camisa a enchoupar chagas
é por isso que anda coxo
não sabes?
as filhas do maestro
não vamos à erva
e safamos do calor
da suor do cansaço
e perdemos a merenda
queijo com marmelo
vinho e limonada
gasosa para as crianças
[se vos oferecem
sanson vinho pingas
sopas de burro cansado
agradecei e recusai
o maestro-papá avisa]
e as maiores aos contos
e a cerveja escondida
proibido tesouro de cevada
partilhar na tardinha aos golos
e ti não ti nunca não
que és filha do maestro
e não vinheste à erva.
as filhas do maestro
não vamos à erva
e já não se fazem monlhos
mas pacas com cordéis
azuis encarnados
e carregá-las no reboque
e o caminho à palheira
cuidado não caias
[outra vez o perigo
guiar sem carta e onze anos
levar o trator coma homens
não chegar aos pedais
nem se vos ocorra]
e a víbora que assoma
e a gata que faz ninho
nós com asma alergia
poeira de grão e semente
e os encontros escondidos
que contam na escola
e nós não sabemos
porque as filhas do maestro
não vamos à erva.
porque as filhas do maestro
falamos castelhano
e não temos trator
nem pacas nem terras.
as filhas do maestro
por não ter
nem temos víboras.
lavandeiras
para as netas de Carmen a Capirota
assassinada polo fascismo em 1936
era pequena como uma pulga
lembra-se levada, elevada,
da mão da avó elena
anda, vem, que lhe hão dizer
a uma velha e uma criança
que nos hão fazer
eram os anos cinquenta e mamá
quase nem lembra
anda, vem, e ajudas-me
a retorcer os panos
recorda mamá que a avó elena
tinha um buscalavida de mal nome
porque esfregando alheias roupas
dera em criar a filha nem de arrimo
nem das silveiras mas carminha
shhhh, que ninguém escuite
aí faziam os alemãos os canões
os da guerra grande a outra que não a nossa
shhhh, não digas que che disse
lembra a avó elena
e não lembra um avô
sozinha andou a velha
com mamá levada
voada da mão
recorda o seu lugar no rio do com
lavandeira respectada entre as iguais
com peitoril em pedra
direto ao lago água em remanso
e mamá ajudava a estender panos
na erveira capelo capirote
a proteger dos falares da chuva
sshhh, há roupa a clareio
e mamá não percebia
a quê tanto segredo
nunca ninguém matou a bisavó elena
no poço da lage no de santa luzia
mesmo sabendo-a afouta e algo roja
nunca ninguém lhe pegou um tiro
após ter violentado o seu corpo
de maneiras outras
antes de violentar-lho
em exposição pública
e mamá pouco lembra
mas repassa de leve
as mãos com as gemas dos dedos
quando fala da avó elena
porque ainda sente na conca
o engurrado tato e fervente
da avó elena a segurar-lhe
os tristes tempos da posguerra.
o engurrado tato e fervente
de uma avó
isso lhe arrebataram
às netas da capirota.
lição de anatomia
deitada
como nessa pintura do rembrandt
estudada por médicas cirurgiãs peritas
aplicam o escalpelo com decisão
sacham-me em rego
do esterno à base do pube
e deixam-me assim
a céu aberto
introduzem nos meus fundos
as suas latexénicas mãos
e extraem de mim
desconhecidas alfaias e ocultas
o baço por exemplo
apanham com delicadeza os pulmões
aleghrias dizemos-lhe nós
porque guardam todos os aromas que respirei
todos também
aquilo que fedia em dinamarca
que fede
submerge uma mão ao leste
e dá com a vesícula biliar
essa que flitrou todas as raivas
os incómodos todos
a vontade de cuspir em tantas faces
outras mãos a fazer cova
recolhem com delicadeza o coração
a cerna da força a dor nuclear.
deveria estar feliz
deveria estar mui feliz
mesmo agradecida
colaboro com o progresso e a ciência
outros corpos tirarão proveito
de pâncreas fígado traqueia
e não estou feliz
porque as médicas e cirurgiãs e peritas
que me deixaram assim
deitada numa cama espida
a céu aberto
e abriram cratera enorme
do esterno à base do pube
e escavaram poço sem fundo
por entre os intestinos
as médicas e cirurgiãs e peritas
aplicaram o seu bisturi
em carne viva
em carne viva
e as alfaias
as aleghrias a bile o incómodo
que arrebataram de mim
eu é que as precisava
porque não sou cadáver
porque não estou morta
eu é que as preciso
para me manter em pé
sempre na luita.
[roubou os pés no muro da arminda. ela nnunca soube]
nascim em 1974 a atender de esguelho se do sul vinha uma aireja purificadora para o norte. nada. isso condiciou-me o olhar poético, ainda que fui lenta no amassado e cozimento da minha voz. publiquei quatro obras, [de]construçom, aquiltadas, a noiva e o navio e seique, ademais de textos voandeiros, muitas vezes de circunstâncias, em coletâneas e revistas. nada melhor que as circunstâncias para colocar-nos onde devemos. ponho escola en cúntis e activismo feminista na Plataforma de Crítica Literaria A Sega. ando às voltas com livros novos, mas já avisei, sou de cozimento e amassado lento.
Fotografía da autora por Paula Gómez del Valle.
Curadoria por Tiago Alves Costa.
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