À Sombra do Sal – II
Contigo escutei os gritos das gaivotas no rochedo
maior, naquela que era a rainha das escarpas da praia
verde. Choravas.
Porque gemiam areias na solidão que mordias e os
homens voltavam nos barcos e pescavam a morte
como peixes sombrios.
Sobre o timbre dos ventos falaste em verso nas
janelas da noite em que o arvoredo se curvava sobre
as canções do mar
*
Nenhum Obstáculo
Sei que a manhã trará o fim dos gemidos
no jovem vigor das marés.
Encosta com loucura o teu ouvido às rochas.
Embarcada numa jangada sem mim,
tocarei um a um os sons dos búzios do vento.
Sei que nenhum obstáculo foi suficiente
para impedir este cíclico regresso à terra.
Não tardarás a alcançar a ilha verde,
próxima das nascentes onde te espero
sem corpo. De pele e de alegria me vestirás.
Da nudez dos meus pés beberás o mel.
*
Santa Catarina – I
É estranha esta terra de árvores altas
que choram através das bagas em setembro.
Caminho pela azinhaga paralela ao mar,
com passos estugados e a mala pesada da escola
e da vida. Sou menina de doze anos, quase treze.
O portão enferrujado da quinta está escancarado.
Parece lunar a casa de portas violentadas em plena luz.
Escuro e de paredes em madeira, o que resta
da biblioteca arrepia-me os sentidos.
Prometo voltar. E corro. Guardo tudo em mim.
É fascinante a água nos lábios das crianças.
*
Ave
Marés e instantes de prata despertam as gaivotas.
No mar espremeram frutos, que têm sabor a noite.
Brancas de tanto conterem o vento nas plumas
encontram nas manhãs a escrita das ondas.
Sem pontos.
É no amor verde da água que o desvario se prolonga.
Sem metáforas.
Sem as correntes da rima cativa, sou ave.
*
Cabelos Brancos
Mãe, nunca te vi de cabelos brancos,
nem a tristeza do rosto que subia aos lábios
quando me incitavas a ler para ti
o cântico dos cânticos, como se fora um conto de fadas.
A tua solidão não conhecia as letras
nem a tua estrela ocultava a pureza das coisas.
Só salomão tinha escrito trovas à sensual sulamita.
Dela cantou os seios como cachos de uvas, os beijos,
a cintura, os cabelos, a pele suavizada por óleos.
Mãe, há muito que o leito era só teu,
ignorada na nudez, não te viram a dor,
a brancura das mãos, o sonho, o vento.
*
Agora que o orvalho dos teus silêncios
se estendeu sobre a folhagem rubra
no ardor desta terra de ninguém,
despeço-me de mim, meu amor.
Sei que a manhã continuará com danças
a seduzir a tua boca, flor
do meu arrebatamento. No meu lugar.
Como chão aberto às sementes de mim,
vem beber a nocturna nudez das uvas.
*
A Mercearia
Em Sines era assim a difícil arte da melancolia.
A minha mãe pedia-me para lhe ‘fazer um mandado’,
coisa que eu tanto gostava.
Eu deixava tudo o que estava a fazer.
«Vai à da D. Ermelinda comprar 1 litro de sal, 1 litro
de feijão-frade e um pacotinho de 1/2 Kg de café de
cevada moído com uma quarta de café»
E lá ia eu à mercearia da D. Ermelinda e do Sr. José
Baltazar com uma cesta de verga muito usada, quase
do meu tamanho. Levava o dinheiro certo na mão.
Entrava pela porta das traseiras passando por uma
divisão onde estava a arca do sal. Cheirava a mar e
a salmoura. Tudo vinha em cartuchos verticais de
papel pardo que se fechavam fazendo uma dobra
no topo (a fita-cola veio depois). Atavam-se os
embrulhos com cordel de algodão de cor viva, em
cilindro, que pendia de um simples suporte fixado
ao tecto para estar a jeito e não atrapalhar. O cordel
era cortado com um golpe mágico de mão e poucas
vezes com tesoura.
Tudo vinha na cesta, mas o cartucho do café vinha
na mão, encostado ao meu nariz. Toda a rua ficava
perfumada. Sonhava com a nova máquina de moer
café “no momento” que o Sr. José comprara para
satisfazer os clientes.
*
Escreve ainda o teu nome na minha mão.
Se um dia a juventude voltasse,
libertava-me do que não faz falta ao luar,
convocava a tua e a minha pele para a luz.
Sobre as ervas não lamento estar só.
É de flores o corpo semente água
seiva taça uvas mares apelo
seio rebentação ternura inacabada.
Aquieto-me sedenta, ergo-me sôfrega
e espero a água da tua boca, céu
de anis estrelado que me condena
à sede eterna de todos os bálsamos.
*
Sede
Não me sobra tempo para anoitecer
agora que a poeira do coração rasgado
se quebra nas esquinas e se demora.
A que sabem as horas em que não estás?
Há muito deixei líquida a minha boca
a morder a noite no teu peito.
Sinto sede sede sede.
Parto para qualquer país onde não exista.
*
Os Poetas
Os poetas sempre acariciaram os gatos.
Os poetas sabem que as gavetas
têm vida própria e no interior
amontoam folhas de papel.
Guardam e roem canetas. Trocam-nas
por lápis para não fazerem cáries.
Dão por si a falar para dentro das gavetas.
Voltam a fechá-las.
Sem dar a volta à chave,
perdida há muito numa brecha do soalho.
Os poetas sonham com máquinas
de escrever vintage a matraquear
nas suas cabeças.
Mudam de ideias quando
se lembram que os poetas
devem morar com o silêncio.
Há muito que os poetas escrevem num teclado.
As canetas e os lápis já descansam mais
numa caneca preta cheia de palavras.
Os poetas esticam a pele da cara entre as mãos
ou levantam-se da cadeira e dão
uma volta à varanda para pensar.
Voltam empertigados por terem
achado uma palavra vadia.
Há sempre pêlos de gato e migalhas
de chocolate no teclado dos poetas.
Eles cheiram as mãos quando pausam.
Os poetas gostam de observar o mar.
Sozinhos e apreensivos voltam.
Devagar, sentam-se à frente
das palavras alinhadas. Receiam
já não sentir pulsar no papel vida nenhuma…
**
Lília Tavares, nascida em Sines, traz dentro de si o marulhar das águas da costa alentejana. Começou a escrever textos poéticos aos treze anos enquanto estudante, inserida num contexto académico em que fervilhavam ideais e de onde saíram vários intelectuais do Baixo Alentejo, como António Guerreiro e José António Falcão. Influenciada por este último, começou a divulgar a sua poesia no então Jornal de Setúbal e a colaborar no Jornal dos Poetas & Trovadores. Foi na livraria Tanto Mar, propriedade do poeta Al Berto, que comprou os primeiros livros de poesia. Em 1979 editou em Santiago do Cacém, Fusão Crepuscular e outros poemas. Volta a publicar a solo em 2013: Parto com os Ventos (Kreamus), seguido de Evocação das Águas (Seda Publ., 2015), Sem Luar |haicais| (Temas Originais, 2015), Nomes Da Noite (Col. A Água e a Sede, #2, Modocromia, 2019), Bailarinas de Corda (Poética Ed, 2019), A Timidez Das Árvores (Col. Mãos de Semear I; Ed. ModoCromia, (Nov. 2020; 2ª ed, Jan. 2021), Casa De Conchas, com prefácio de José António Falcão; (Col. Mãos de Semear II; Ed. ModoCromia, 2022). Participa em colectâneas de Poesia em Portugal, Espanha (Galiza e Extremadura), Suíça e Roménia, algumas de âmbito solidário. Em Abril de 2010 cria no Facebook, a Página Quem lê Sophia de Mello Breyner Andresen, de divulgação diária de Poesia, da qual é co-autora. Mestrada em Psicologia Clínica no ISPA, em 1988 alcançou o 1º e o 2º prémios de Poesia da AEIspa. Em 2021 organizou e selecionou textos inéditos de 123 autores em ÁGUA SILÊNCIO SEDE- Antologia em Homenagem Poética a Maria Judite de Carvalho no seu Centenário (Poética Edições, set. 2021). Em 2022 integrou, a convite, com José Proença Carvalho, o júri do Concurso Nacional TALENTOS CATIVOS II – 2021/2022 – POESIA, promovido pela Dar a Mão – Associação para Ajuda à População Reclusa.
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