Do lado de dentro, um som ensurdecedor. Ouviam-se, a metros, corpos se chocando, ou algo a bater, como estacas a serem fincadas na pedra. Gritos eram muito raros, porque não havia forças. Eu completava dezessete dias de prisão. Tinha perdido o contato com minha esposa e meu filho. Fausto, um colega de cela, delirava e roía o próprio corpo, uma autofagia animal que nunca havia visto; e me contorcia de horror. Era possível ver, em sua perna, um ferimento que supurava e expunha possivelmente o osso. Já não havia mais músculos. Ele estava, pelas suas contas, há três meses ali. Como era muito fraco e não conseguia trabalhar, eu e mais uns vinte ou trinta fazíamos o seu serviço, e de mais um tanto, que estava em estado de morte premente. Ninguém sabia quando os mandos vinham, a que horas, e com que determinações. Os carrascos eram poucos, revezando-se em turnos com outros grupos, e mantinham um verdadeiro arsenal. Eu havia, sim, cometido um crime, o roubo de alguns quilos de carne, mas não imaginava que seria esculachado como um animal. A rebelião social, ou a guerra civil, como queira, durava dez meses. Nosso imperador determinou a prisão e a morte sumária dos rebeldes políticos. Perdi, numa leva, sete amigos de infância, porque se organizaram para a dita revolução, que nunca chegou. Pensei que, pela minha proximidade, seria também executado. Horácio teve o corpo esquartejado e exposto em praça pública, com mais outros considerados de alta periculosidade. Não temos paz de há muito. Nosso imperador guerreia contra outros países que ameaçam qualquer tipo de invasão e contra as insurreições que se espalham, de tempos em tempos, pelo território nacional, lideradas por aqueles – e são muitos – que não concordam com a cominações e os impostos, que mudam do dia para a noite. É bem verdade que as forças vêm do Sul e demoram a chegar para apagar algum princípio de incêndio. Dada a escassez de alimentos, fui obrigado a roubar, para a mantença de minha humilde família. O que é que se vai fazer? Por azar, prenderam-me no mesmo dia e fui deslocado para um deserto, cuja localização não tenho a menor ideia. É um campo de trabalho, onde as pessoas são jogadas à própria sorte. Recebemos, quando muito, uma alimentação por dia e nos digladiamos, como bichos, para abocanhar os farelos e lavagens. Benedito matou uma galinha, que invadiu o nosso território, e a comeu viva. Foi a cena mais emblemática a que assisti aqui, um dia após chegar. Refleti que teríamos de nos proteger, inclusive de nós mesmos. Chegaríamos ao ponto de comermos uns aos outros? Chorei perdidamente durante duas noites. Fausto, aquele, me consolou: disse que não padeceríamos muito, que uma força estrangeira estava a caminho e que seríamos salvos – não só, que viveríamos depois num verdadeiro paraíso, o país dos nossos sonhos, livre e democrático. Por isso, crente, parei de me lamuriar. Mas os dias foram correndo. Os assaltos de companheiros aconteciam à noite. Por vezes, muitos não voltavam. Os guardas não nos diziam os motivos. Sabíamos da existência de um galpão onde pessoas débeis e rebeldes eram jogadas. Ali deviam acontecer atrocidades. Nas madrugadas, ficava alerta para não ser arrastado. A minha intenção era de arranjar um grupo disposto a fugir. Claro, seria algo absurdamente perigoso, mas melhor tentar sobreviver que se entregar à morte certa. Luiz era habilidoso, era ferreiro e marceneiro, além das engenhocas que preparava. Estava ainda vigoroso para enfrentar uma saída. Aprígio era metido a mandachuva – quando os donos do galinheiro (ou, melhor, pulgueiro?) não estavam. Será que poderia me fiar a eles? Meu contato com Luiz se tornou mais intenso, através de códigos pelos quais, à medida que íamos criando e memorizando, elaborávamos planos. A sorte era que Luiz já tinha amizade com Aprígio, e lhe ensinou a entrar na nossa comunicação. Não podíamos demorar, tendo em vista a sombra da morte a pairar. A alimentação, por um tempo, melhorou. Chegaram provisões de outras regiões. Comíamos batata e milho, rigorosamente, com algum incremento. Foi o nosso suspiro. Pararam as matanças esporádicas; ligeiro tempo de tranquilidade. Havia algum aceno à paz. Mas continuávamos com os nossos códigos e planos. A data propícia para a fuga, que não poderia falhar, seria uma quarta-feira – ou o que acreditávamos ser quarta-feira, dada a dificuldade de orientação. Nesse dia da semana, havia troca de regimento e certa desorganização. As fronteiras, por alguns instantes, estavam desprovidas de guarda. Luiz deu o pontapé, para que executássemos dali a dois dias. Ele confiava na astrologia, ciência que dizia conhecer. Nos mapas mentais que fez, seria um dia de aberturas e novidades positivas. Fausto, antes de morrer, me entregou uma possível localização de onde estávamos. Ele maquinava com outro grupo, só que não houve tempo. Devíamos aproveitar os caminhões que entravam e saíam. De fato, no dia diminuíram a guarda; parece que havia algo muito sério em algum lugar do país. Em códigos, Luiz vibrava. Mas não podíamos comemorar. Um erro seria fatal. No tempo de revezamento de tropas, num lapso, nos pregamos, literalmente, camuflados, na lataria dos caminhões imundos de poeira. Aprígio foi o primeiro a zarpar; era o mais corajoso e impaciente. O problema era ele fazer alguma besteira no processo. Luiz também se foi, estava indetectável. Depois do banho de poeira, instalei-me na lataria de um caminhão que demorou a sair. Passei cerca de vinte minutos me segurando contra a minha fraqueza. O soldado deu a partida e imprimiu velocidade de modo instantâneo. Quase caí. Ainda aguentei cerca de duas léguas. Num ambiente rochoso, me joguei no chão, para que pensassem que o barulho fosse mesmo do caminhão de encontro com as pedras. Estava livre, mas devia correr para confirmar a promessa. Não havia forças nem sustância. Logo, entrei na mata seca. Pegava água estocada nas folhas e em cavidades nas rochas. Dormi um sono profundo, talvez por umas vinte e quatro horas. Acordei bastante debilitado, sem acreditar na liberdade, ansioso. Andei um dia inteiro, até achar uns casebres abandonados. Instalei-me em um. O dono era caçador, desconectado do mundo. Quis me matar, mas o acalmei com certeiras palavras. Comemos juntos, enquanto lhe explicava sobre a situação do país – que ele não sabia sequer da existência, ou pensava ser uma ilusão. Depois de dois dias, pedi que me guiasse até a cidade mais próxima, e ele já havia se afeiçoado a mim, querendo, inclusive, que não lhe deixasse. Demorei um mês para encontrar a minha família. E foi aí que senti a maior dor de minha vida: minha esposa disse que Arnaldo, meu filho primogênito, havia morrido num ataque a bomba. Perdi-me no luto. Terra devastada. Passamos ainda dois anos para saber o gosto de uma suposta paz. Nosso imperador fora deposto e morto a tiros. Nosso governo era provisório, capitaneado por um país do Norte. E nossas vidas eram penalizadas pela carência absoluta. Escrevo em 1889, para dizer que estamos escapando, sob o juramento de vitória.
❧
Adriano Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro romance Flor no caos (Desconcertos Editora); em 2020 os livros de contos Contículos de dores refratárias e o ano em que tudo começou; em 2021 o romance Em mim, a clausura e o motim (Editora Penalux); e em 2022 a coletânea de contos Não há de quê (Editora Folheando). Colabora mensalmente com as Revistas Mirada, Samizdat e Vício Velho. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária e em Revisão de Textos. Membro do Coletivo de Escritoras e Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.
Cf. Instagram de Adriano | Cf. Facebook de Adriano | Email: adrianobespindolasantos@gmail.com
You might also like
More from Adriano B. Espíndola Santos
“Filho de Deus” | Adriano Espíndola
"Filho de Deus" é um conto de Adriano Espíndola.
“Significâncias” I Um conto de Adriano B. Espíndola Santos
É difícil a primeira rejeição, mas depois a gente se acostuma. Não vale nada. Falei essas sinceras e diretas palavras …