Nunca tinha estado neste evento que comemorou este ano a sua vigésima edição.
Ouvira falar de um encontro literário no Norte, mas desconhecia a estrutura e o estilo. Foi, portanto, com a virgindade de um olhar de mulher das ilhas que fui ter ao norte, à cidade da Póvoa de Varzim para, pela primeira vez, assistir de bancada a um evento literário que me prometia um mundo de conhecimento numa só semana. Foi com esse espírito que, este ano, aceitei o desafio que me foi proposto pela amiga Aida Baptista que há vários anos me desafiava. Tinha passado pela Póvoa, uns anos atrás, de corrida. Desta vez conheci a cidade. Preparada para o turismo, a Póvoa tem tudo e os poveiros são gente linda, simpática, acolhedora e participativa.
Ver o Teatro Garret completamente cheio para um evento literário foi a minha primeira grande surpresa. Diz-se (e hoje em dia vivemos muito do “diz-se”) que a literatura não arrasta as multidões. Não é verdade. Na Póvoa, vi exatamente o contrário. Nos últimos dias, ou nas mesas com gente “graúda”, era preciso correr para arranjar um lugar donde se pudessem avistar os colunáveis. No primeiro dia tive o privilégio e o prazer de conhecer a Manuela. A grande obreira das correntes que será agraciada pelo presidente da República com uma merecida medalha. Também ouvi falar repetidas vezes do Diamantino que nunca cheguei a ver. O evento tinha bastidores. Claro que tinha. A Manuela é acolitada por uma equipa fabulosa de gente nova, responsável e a funcionar em perfeita consonância. Ao lado do teatro, a feira do livro e as galerias onde decorreram lançamentos de livros e outros eventos culturais. Uma vez ou outra, havia sobreposição de acontecimentos e era preciso escolher. Escolhi sempre as mesas. Com um moderador e seis participantes, cada um dispunha de dez minutos para deambular literariamente à volta de versos de poemas de Sofia de Melo Breyner Anderson, a grande vedeta dos vinte anos das correntes. A Sofia da menina do Mar completaria este ano 100 anos. Foi a homenageada natural.
Cada convidado tinha, pois, dez minutos para mostrar o que valia. Ou talvez não. Mas eram dez minutos que significavam, no mínimo, um carinhoso obrigada a quem os convidou. E quando somos convidados, ou levamos o vinho ou levamos um bom discurso. No caso, era mais um discurso que batesse mais ou menos com a proposta da organização. Sofia tem frases fabulosas. E a organização escolheu algumas que são, em si mesmas, fonte de inspiração automática:
E livres habitamos a substância do tempo
O homem soube de si pela palavra
Tão nítido e preciso era o vazio
Porque os outros se calam, mas tu não
Nesta manhã eu recomeço o mundo
Não te ofenderei com poemas
Como é estranho não saber
E as minhas mãos não podem prender nada
Estes alguns dos admiráveis motes para os tais dez minutos de fama a que cada um teve direito na sua mesa. E surgiram efetivamente alguns discursos dignos do evento e da memória de Sofia. Os leitores que estavam como eu, sentados na bancada por baixo do palco, aplaudiram com grande entusiasmo sempre que se sentiu correspondência entre o mote e a palavra proferida. A bem da verdade, todos tiveram palmas, mas nem todos receberam a unanimidade dos presentes.
Num evento, quase tão importante como o que se passa no decorrer do mesmo, é o que fica e o que cada um leva para casa no final. E aí, fixei alguns rostos, tomei notas e escrevi algumas bonitas frases que ouvi. E gostei. Gostei do filme Raiva do realizador Sérgio Tréffaut, adorei o espetáculo da Aldina Duarte e fiquei fascinada com a qualidade musical de Uxía, Mû Mbana e Sérgio Tannus. Foi um espetáculo único.
Laborinho Lúcio e Nélida Pinon protagonizaram dois momentos inesquecíveis para mim. Gente com alma, com vida, com história, com corpo vivido. Gente que fica, que não se esquece, que se repete, que se quer voltar a ver. O problema dos nossos tempos é a dificuldade que temos em estar uns com os outros sem estarmos agarrados ao telemóvel ou a postar as nossas glórias vividas. A nossa falta de envolvimento. Marcelo Rebelo de Sousa que abriu o evento, não é apenas aquele que nos ensinou a fazer selfies. É também alguém que marcou a nossa história enquanto povo com a sua forma emocional de proximidade com as pessoas. E isso deixá-lo-á na história de Portugal como um ícone deste tempo de tanta indiferença. Foi uma semana maravilhosa. Senti falta de mais proximidade entre autores e leitores, mais tertúlias, mais momentos de afetividade entre pessoas. Mas isto sou eu a falar porque percebi que, entre autores havia mais intimidade provavelmente porque muitos já eram repetentes da Póvoa. E isso faz certamente toda a diferença. E também eu, pelo meio, abracei a Ana Loura, a Lélia Nunes, a Cristina Ovídio e estive na companhia de amigas para a vida. Porque estes eventos servem exatamente para nos colocar nos percursos uns dos outros.
Na reta final do evento, chegou Onésimo Teotónio de Almeida, o açoriano da Brown, do mundo inteiro, das anedotas, da simpatia, da fluidez no estar, da capacidade única de conectar pessoas, da simpatia que oferece sem limites a todos os que se aproximam dele. Percebi logo que era uma das grandes vedetas das correntes até porque também ele, é um clássico deste evento ao ponto de ser também autor de um dos títulos mais mediáticos deste anos: Correntes d’escritas e correntes descritas. E receber das suas mãos um exemplar autografado foi uma responsabilidade e uma honra. Este ano veio acompanhado da esposa, Leonor e do filho Pedro. Duas notas de música na pauta deste evento que me deixou uma imensa vontade de voltar e uma “invejinha” boa da organização.
Portanto abrimos com Marcelo e fechamos com Onésimo. Dois mundos afetivos no meio de intelectuais da escrita em espaços decorados a rigor com direito a velas acesas e rosas vermelhas. Posso dizer como Sofia:
Esta é a madrugada que eu esperava!
Gabriela Silva
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Gabriela Silva nasceu a 1 de Julho de 1953 na freguesia da Fazenda, concelho de Lajes das Flores, onde sempre viveu. Licenciou-se em Português e Francês pela Universidade Aberta, aliás, o que lhe viria a servir de suporte para a actividade/profissão principal, sendo actualmente professora aposentada. Foi eleita deputada pela ilha das Flores, entre 1984 e 1988, à Assembleia Legislativa Regional dos Açores.
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