Joaquim Saial (1953, Vila Viçosa, Portugal) é mestre em História da Arte e licenciado em Ciências Humanas e Sociais e em Serviço Social. Bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian e docente dos ensinos médio e Superior (Instituto de Novas Profissões e Universidade Católica Portuguesa), publicou “Estatuária Portuguesa dos Anos 30. 1926-1940” (1991): “Manuel Gamboa. A Arte por Vida” (1998); “Capitania, Romance de Cabo Verde” (2001); “Seixal. Arte Pública” (2009) (livros esgotados) e “Poemas para a Hora de Ponta” (2020). Participou em outros oito livros e escreveu centenas de artigos em publicações de Portugal, Cabo Verde, Espanha e Roménia e em catálogos de arte. Realizou dezenas de palestras sobre arte, cultura e história e diversas outras actividades, na área da cultura e das artes, em Portugal e no estrangeiro. Foi director da revista de cultura “Callipole” (Vila Viçosa), onde escreve há 26 anos e é cidadão honorário da Ribeira Grande de Santiago, Cabo Verde. É autor dos blogues “Ibn Mucana” (poesia) e “Textos da Tinta Permanente” (prosa).
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Os amigos
José dorme no vão de uma ourivesaria da Avenida
e não tem amigos.
Josué é locatário de um T0
e também não tem amigos.
Dora Sarmento possui uma vivenda com alpendre,
onde, uma vez por outra, aparecem alguns amigos.
Edgar Moreira reside numa moradia com piscina,
adorada pelos seus muitos amigos.
Olga Gomes tem um monte no Alentejo, com campo de ténis
sempre cheio de amigos.
Bernardo de Menezes é dono de um veleiro first class,
em geral atestado de amigos.
E já nem falo dos imensos amigos dos amigos dos amigos
de Dora, Edgar, Olga e Bernardo que estão sempre a aparecer.
Oh, como é bela a amizade,
como é bom ter amigos!…
*
Quando, enfim, fores a Berlim
Quando, enfim, fores a Berlim,
senta-te numa esplanada da Ku’damm,
pede salsichas e uma caneca de cerveja
e vê, deliciado, passar os ciclistas:
homens de negócios, de gravata e mochila,
mulheres que pedalam com filhos na garupa
e músicos com violinos ou fagotes a tiracolo.
Quando, enfim, fores a Berlim,
vai ver os barcos atracados nas margens do Spree
emociona-te no dramático museu judaico,
chora no memorial aos judeus assassinados na Europa
e reconhece as marcas de balas russas em velhas paredes
mas não compres bonés e condecorações da RDA
que fizeram ontem para te impingirem hoje.
Quando, enfim, fores a Berlim,
mistura-te com as gentes do metropolitano
e dá uma moeda ao jovem flautista da Konzerthaus
que quer ganhar mais uns trocados.
Se acaso te perderes, haverá sempre alguém amável
para te ajudar a perceber os mistérios das estações,
no dédalo complicado do U-Bahn.
Quando, enfim, fores a Berlim,
observa a Coluna da Vitória, que o canalha desviou,
e continua até às portas de Brandemburgo.
Pode ser que perto encontres o homenzinho rubicundo
de guarda-chuva e chapéu de coco, mesmo no verão,
que sai sorrateiro da embaixada britânica,
a caminho do Hotel Adlon ou do Café LebensArt.
Quando, enfim, fores a Berlim,
esquece-te horas a fio na ilha dos museus.
Sobretudo, procura a egípcia que “não tinha papeira”,
recordando a canção do Zeca, nosso bardo andarilho.
E vê como estão felizes os namorados que se beijam na relva
e todos aqueles que apanham os raros raios de sol
que, ali sempre parcos, a estrela lhes oferece.
Quando, enfim, fores a Berlim,
passa pela livraria do velhote, o das bancas na rua,
onde encontrarás “Ein Anarchistischer Bankier” de Pessoa,
e o disco dos Kraftwerk longamente procurado,
cujo booklet lerás num estaminé de kebab turco,
enquanto a tarde cai serena e as ruas se enchem
para o convívio de mais um final de dia.
Quando, enfim, voltares para casa,
despede-te da cidade com um sorriso.
Come um berliner, pai das nossas bolas de berlim,
e compra uma lembrança bonita no KaDeWe,
junto ao qual, um “homem perdido no tempo”,
como dizia David Bowie, recita versos de Schiller
e sua mulher se penteia e afaga o cão de ambos.
*
Sonho vínico
Esta noite sonhei que o Alentejo era uma enorme,
digamos… gigantesca, talvez até, imensa vinha.
Já não Alto e Baixo,
passara a Vinha Alta e Vinha Baixa
e as searas tinham desaparecido,
todas, definitivamente.
Nem a fábrica do Manuel dos cafés sobrevivera,
sequer os queijos de Rio de Moinhos,
agrários e ganhões, qual nada, era o havias,
oliveiras, sobreiros e azinheiras, zero,
nem as pedreiras tinham operários
muito menos as cerâmicas oleiros,
o aeroporto de Beja fora-se
e o Terreiro do Paço de Vila Viçosa também
(rebaptizado de Vinha Paçã),
agora, eram todos vinhateiros.
Isto, fora as lojas dos chineses
que apenas vendiam garrafas e rolhas
e as gráficas que fabricavam rótulos e contra-rótulos,
mais uma data de fundições e oficinas
para feitura do chumbo e lacre
destinados aos gargalos…
Cepas, uvas, latadas e gavinhas,
cooperativas, adegas e barris, por todo o lado,
não falando de um intenso odor a bagaço,
eram para aí treze graus e meio
(ou 14 ou 15 ou 16?)
e, claro, bebia-se
ah, pois, bebia-se,
bebia-se à farta.
E a Vinha Alta e a Vinha Baixa
eram as fontes do País
e do Mundo.
E eu, saudoso do meu Alentejo antigo,
de grão, trigo, centeio, cevada e ceifeiras,
a suicidar-me numa bojuda talha de barro,
a fazer glu-glu de afogado
no generosíssimo tintol,
engolindo taninos e sulfitos
e a acordar depois no céu,
com a mais fantástica ressaca
que as nuvens (e os anjos)
haviam visto.
Que noite! Mas ó que noite…
Hic!…
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