Leio à exaustão
Depois de olhos embaralhados
E sentinelas das palavras
Abro a geladeira e nada me interessa
Nem o vapor gélido que me toca o rosto
Prefiro o calor da noite de verão
Amadurecendo as frutas
Na fruteira
Algumas bananas já podres
Preparo um café
Oito colheres de pó
Abro a janela
O frescor da noite é mais delicado
Sinto os cheiros das flores e folhas
Se misturam no ar inebriado de sentidos
na luz solitária e silenciosa da minha rua
ouço o som quase inaudível
das raízes se contorcendo no fundo do fundo da terra
ouço o esticar dos galhos das árvores
estalam como ossos dos troncos viscerais
ouço os gemidos de dor dos botões que se abrem
ouço o pio dorminhoco da coruja sentinela
a noite é plena de mistérios e desejos
a lagartixa passa lépida pela parede branca do quarto
seus olhos esbugalhados estão atentos ao meu movimento
tomo mais uma xícara de café
e minha memória começa a se multiplicar em ritmo descompassado
e um ar nostálgico toma conta de mim
me lembrei de uma viagem que fiz a Marrocos
andava pelas ruas de Rabat como se conhecesse todas as cores da cidade
o ar nebuloso das areias do Saara
lambe a testa dos marroquinos vendedores ambulantes
o rosto emoldurado de sol e areia
e de todas as cores que se desembocam no rio Bou Regreg
antes é preciso comer o saboroso e vivaz figo da índia
e depois sentar no café Maure e tomar um chá de menta.
De trem fui a Marrakech
Cidade de uma única cor
Najas dançam ao barulho das pisadas dos turistas
E os sucos de granada molham meus lábios sedentos e secos
e aqui, nesta noite de fevereiro em São Paulo
o céu ríspido com riscos que rasgam as nuvens negras
me levam à minha cidade
à meninice de calção e pés no chão
in loco carceris
Hic Maurício!
Este menino joga pedras ao rio
e ondas vibram
e nada é fixo
a lagartixa com sua atonia
com a minha atonia
fiquei atônito e aturdido
com o vai e vem da memória fantasmagórica
sorte deste réptil oportunista não ter lembranças e não ter nostalgia
Fecho a janela
e a noite lá fora se forma com os mistérios de Elêusis
e eu já não caibo mais em mim
e menos ainda em Calímaco
preciso de espaços
somos seres que contemplam o firmamento
para sentir o sabor das palavras
e enxugar a sânie sobre os lábios
O dia virou de cabeça para baixo os lençóis da noite.
A umidade é cúmplice.
Algumas limalhas do sonho
ainda estão no chão.
Antes que o dia me pegue,
aproveito estes momentos.
Daqui a pouco vou colocar
minha pele circunstancial.
Sinto a vaga batida dos seres difusos
e das coisas.
Encontrei um sabiá no peitoril da janela.
Sei que é o mesmo que me visita depois de dois anos de ausência.
Quanto tempo um sabiá vive?
Observo a sua imobilidade, por segundos,
antes de confiar a delicadeza do voo.
Botões de alamandas e orquídeas desabrocham.
Cores ganham vida e se transformam e se explodem.
E aqui estou, no meio do amanhecer, saboreando uma fatia de pão
Mariposas noturnas
“Till human voices wake us, and we drown.”
(T. S. Eliot)
A noite é inevitável!
Companheira dos insondáveis mistérios e segredos.
Olho o relógio sobre a escrivaninha,
São mais de duas da madrugada e não consigo deitar e dormir.
Aqui do meu quarto ouço
Bem distante
Barulhos vários, vindo de várias ruas e becos.
A noite atravessa todos os espaços e entra por todas as frestas
E domina com seu ar arrogante todas as criaturas existentes.
Nela, ratos passeiam.
Gatos escorregam pelos telhados com suas patas macias.
As mariposas grudam nos muros encardidos.
Os cachorros latem e mordem a escuridão da sua própria sombra.
As aves encaixadas entre galhos e folhas das árvores.
Os besouros e aleluias bailam em torno da luz dos postes
Que iluminam a noite e giram e giram como uma roda incansável.
E eu, aqui, sentado em minha poltrona à vitoriana.
E do meu lado um T. S. Eliot aberto, a esmo.
Seus poemas ondulantes e embriagantes giram como mariposas ao luar.
Sinto-me desprotegido com ele. Incomoda-me. Desestrutura-me.
E lá fora alguém morre.
E lá fora alguém nasce.
E lá fora há gritos e segredos de alcova do sexo dos anjos.
E lá fora os versos de Eliot voam sem trincheiras
Ultrapassam vigorosas vigas pelos interstícios dos espaços infinitos
E lá fora alguém se suicida
E lá fora alguém nu
E lá fora lágrimas escorrem, em um vale desamparado.
Alguém neste momento abriu uma janela, em algum canto e recanto desta cidade.
Ratos continuam a passear pelas calhas das casas e adentrando os bueiros
Que se espalham pela cidade.
A noite entrou e o vento tocou a face carcomida pelo tempo
E o sonho se dissipou e voou nas asas das mariposas.
Sonhava o quê? Dispersou o desejo.
E lá fora, um bêbado caído entre os meios-fios de uma rua qualquer
Também sonha.
Os versos eliotianos cruzam os muros do purgatório e pedem abrigo
E pedem aberturas.
A prostituta notívaga, caminha carregando um corpo poético de lassidão.
De lá para cá, de cá para lá e para e não vê poesia em Eliot.
S e entrega aos homens como uma cachorra no cio.
Ela sonha entre trepadas e enganações e fingimentos.
Lá fora, alguém clama clemente e crente que irá amanhecer.
Lá fora, os pecados sucumbem os tetos góticos das igrejas
Com suas sentinelas gárgulas.
Lá fora, o farfalhar dos morcegos ferem os ouvidos dos poemas de Eliot.
Aqui dentro, eu profano.
Abro a janela e bebo a noite contaminada de gritos, espasmos e berros e clamores e silêncios.
Debruço sobre os vértices dela e vejo um céu nublado.
Não há estrelas e nem lua e nem clarão.
Somente a escuridão das nuvens arrastadas pelos ventos do norte.
Queria ver além das nuvens
Além de mim.
Queria contar estrelas no céu límpido, afastado das luzes da cidade.
Queria ver Andrômeda.
Quero tanto. Desejo muito!
Tirésias, velho cego e companheiro de Hades, me diga:
Mariposas sobrevoam os versos de Eliot, por quê?
Mariposas batem suas asas na noite nublada, por quê?
Por que a noite não dissolve cada vão poético?
Por que a vida é mais noturna?
Por que as mariposas têm olhos enormes em suas asas?
Levemente, no sopro do vento, ela entra, sorrateiramente, entra
E bate suas asas, desordenada
E pousa nas páginas abertas de Eliot
Vejo aqueles olhos abertos das suas asas
Encrustados e penetrantes e insondáveis
E lá ficou.
A noite parece eterna.
Maurício Gomes é professor de literatura, jornalista cultural e escritor. Meu primeiro livro foi lançado em 2012, (Des)caso com poesia: Inquietações. Participei de várias antologias e revistas literárias (Portugal, México, Moçambique, Estados Unidos e Marrocos) e festivais internacionais de poesia (México, Marrocos e Tunísia). Fui agraciado em alguns concursos de poesia e contos. Sou do Brasil e moro em São Paulo.
créditos da fotografia: Marcos Ferreiro
You might also like
More from Mauricio Gomes
“Me chamo M” por Maurício Gomes
Minha esposa diz que eu não tenho senso de humor. Minha esposa não gosta de mim. Eu uso óculos grossos. …
“A mulher e o polvo” por Maurício Gomes
Um imenso pássaro passa pela claridade da sua janela. Tão rápido que ela não conseguiu vê-lo. Nesta noite, ela conheceu …