entrelaçamentos quânticos
sou um poema de Szymborska
sou uma rocha de resistência milenar
sou o cavalo azul de Lorca
sou o deus de Espinosa
sou uma pólvora pronta para estourar
sou um papel em branco
o quebranto vegetal da palavra antes de brotar
sou o véu de azeviche da noite
sou a pele verde do mar
sou o sotaque mineiro
sou um idioma estrangeiro
sou todas as línguas indígenas
mortas, vivas no falar brasileiro
sou uma dança africana
sou música de preto
sou Três pontas, Belo horizonte
sou Compostela
sou a costela de Madame Potifar
sou a fome de Eva
sou uma tela de Frida, Lygia Clark, Schiele
sou uma novela de Mary Shelley
Marguerite, Guimarães Rosa, Carolina de Jesus
sou os artifícios noturnos
lúcifer, lucina, vaga-lume
sou estrela e estrume
sou indomável, selvagem, arredia
sou a rebeldia de Lilith
sou a matéria alegre de Clarice
sou as dobras carnais de Merleau-Ponty
um cocar tupi-guarani
sou a conversa infinita de Blanchot
oxum, ogum, iansã
sou as morfogêneses da manhã
sou as linhas de fuga de Deleuze
delírios, oxímoros, ritmos policrômicos
perfumes, silêncios, sabores, batuques, luz, tons
sou um cristal de Simondon
sou um grito libertário
uma onda
uma revolução
um anonimato
sou qualquer um
virtual e vibração do comum
quantum, quanta
uma ciranda quântica de átomos
mênstruos
mudo a disposição dos cabelos como quem muda de ideia: tateando as técnicas da luz e as reverberações dos insetos. escuto, ainda sem palavras, o rumor de uma flor de cactus se abrindo e um astro que entra na habitação de sua corola acendendo uma cor amarela. há muitas coisas para dizer, mas as coisas são mudas. as coisas mudam, deixando-nos algo por dizer, sem dizer, indizível. há ciclos, ciclones, turbilhões de moléculas tímbricas nos ossos de um passarinho, quase todos sem nome, quase todos procurando um relâmpago: um nascimento urgente e fugaz. são canções flutuantes que os polens transformam em fogos sígnicos e cromáticos. o ar está repleto de origens, de passagem até às turbulências de um olhar. deslizo entre os dedos a dança de um bico-de-leão, o contorno histérico de sua fragmentação estende um mapa experimental ao desdobramento do meu silênico. hospedo seu roteiro nas polinervuras do espanto. respiro as evanescências das neblinas, as sonoridades das roseiras, a maternidade dos vidrais. sou estilhaço poroso, azul, vermelho, roxo. meteorologia das montanhas lactantes: mel, Minas e mênstruos
entre o van e gogh
escolher um nome para colher água com as mãos
esquecer o nome na curva que inaugura o anoitecer
usar as pontas dos dedos para crescer o orvalho na pele de um amor
guardar o perfume do rio nos torvelinhos dos cabelos
fechar a ferida com a linha do horizonte
deixar a cicatriz caber um oceano, um silêncio e uma travessia
chamar de rebeldia a obediência irrefreável à vida
desenhar um girassol entre o van e o gogh
escutar o murmúrio da luz na dança da poeira
soprar um infinito na desembocadura do peito
durar o risco em sonoridades lumínicas
devir ondas eletromagnéticas, eflorescências ígneas, pulsações poéticas
intensificar o espaço vital disponível ao desconhecido
acompanhar com um ritmo a queda das folhas e a ascensão dos galhos
ser o contraponto entre a chuva e a terra: umidade silente, germe vibrátil
fugar
fim de julho
uma fuga de bach
dobra a esquina
nós dois juntos
no seu olhar
pigmentos de turmalina
folhas de nenúfares e dragões de juncos
*
Carla Carbatti é doutoranda em Estudos da Literatura e da Cultura pela Universidade de Santiago de Compostela (USC). Possui textos poéticos, ensaísticos e resenhas publicados em várias revistas eletrônicas. É autora do poemário ‘Na cadência do caos’ editado pela Urutau, 2016.
Curadoria de Tiago Alves Costa.
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