O SUMO FRESCO
Vieram negras as sementes do abandono
e nos teus ossos iniciaram-se os ofícios.
Tu, discípula da sombra.
Tu que acendes os teus lábios pelos
fósforos escuros
e incendeias a floração da tua língua.
Tu que levas nos cabelos um registo de orfandade
e sobre a pele um cheiro podre de
lençóis hospitalares
como um hálito de flor
ou um lentíssimo perfume.
Tu, discípula da rosa dos outonos,
que amanheces e desovas como um saco de embriões
e vertes litros de mirtilos sobre os pés,
o sumo fresco dos estábulos da morte
e que às escuras, como um lírico cordeiro,
ofereces em autópsia o teu ventre expiatório
e iluminas com o brilho dos teus dentes
os sorrisos das caveiras incubadas nos espelhos.
Tu que clamas e ressoas livremente nas cidades
como um fúnebre tambor
mas amordaças os espinhos do teu
sexo de cinzas,
o teu cálice apagado pela lívida aliança
e adoeces como um nódulo
ou uma caixa de silêncio
pelo homem que exauriu no sono angélico das pombas,
pelo homem-esqueleto a revestir-se nos pomares,
pelo homem de pulmões nupciais,
cheios de algas tenebrosas,
pelo homem enxertado de moscardos e abundâncias,
o rapaz da deserção e do livor,
dos favos roxos nas narinas,
da dulcíssima agonia
do mel.
in Tras los Claveles – 35 Poetas Portuguesas, Garvm Ediciones, 2022
*
PEQUENA MORTE
Pairávamos acesos como pássaros à luz, era verão
e adormecíamos no ventre das fogueiras
– prometeicos utensílios que hasteavam sobre a noite
a solidão da nossa escura juventude.
Sobre as bocas arquejantes, sobre as nucas
e os cabelos inflamados de pavor,
sobre os versículos que inscrevíamos
nos flancos prematuros,
desvendávamos as facas da nudez
e uma lâmina de sangue abria o sexo nas tábuas.
Lembro agora: eram pungentes os perfumes, as grainhas
do lamento, a adolescência que endossávamos
ao voo dos pardais, quando em segredo,
docemente desnudados nos estábulos de Agosto,
pressentíamos o pássaro tombar nas cercanias,
delicada pulsação de pombo fúnebre
das núpcias. Lembro agora: a tua morte de rapaz
nupcial, ardente mística da carne à flor da pele
abrindo a flor e a raiz da minha carne,
enquanto os mortos, ao redor, nas suas câmaras
de sombra, como lírios que brilhassem
pelos quartos obscuros
vigiavam em silêncio, e descobriam-se,
de súbito, vingados.
*
PRÓDIGA
Falo da mulher que foi cegada pela vinda de um clarão,
da rapariga que desperta para a lâmpada solar,
os olhos brancos e feridos como pétalas à luz.
Falo da fêmea que se despe sobre o centro do poema,
os cascos frescos e molhados sobre as águas do poema,
a rapariga que mergulha loucamente nos corais.
Uma figueira exuberante prefigura-lhe a nudez
e o seu espírito revela-se nos figos luminosos,
nas fruteiras onde ferve a pele áspera dos figos,
nas canastras perfumadas onde os frutos apodrecem.
Sei que um figo, se trincado pelas lâminas
da sede, prefigura o sangramento da mulher,
porque ela sangra docemente como um fruto proibido,
ela goteja sob a árvore maldita:
a sua carne é um verão atravessado de coágulos.
Nos lençóis, nos linhos parcos consagrados à pureza,
posso ler como um oráculo o seu
registo de menstruo,
posso ver delinear-se as asas bíblicas da ave,
posso ver passar as pombas nas linhaças menstruadas,
posso ler nas plumas limpas, arejadas dos lençóis
a sua líquida
escritura de sangue.
Que ela sangre e apodreça na doçura de um perfume
e seja pródiga, isto é:
que a sua boca seja
exótica e floral,
que amadureça como a nota mais profunda
de uma fúnebre fragância de jasmins
e que os seus gestos repercutam o desespero de um pássaro.
E o espírito, cercado pela luz,
amachucado pela luz de uma palavra,
quebre agora o doloroso coração do silêncio.
in Tras Los Claveles – 35 poetas portuguesas, Garvm Ediciones, 2022
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VÍNCULO
Porque o amor é forte como a morte.
in Cântico dos Cânticos, 8:6
E quando a luz vier cingir a minha lápide sombria,
quando a noite libertar o voo cósmico das aves,
quando as ervas engolirem a leveza dos meus ossos
e o meu peito apodrecer
sobre a sageza das planícies,
e eu entrar como um espírito
nas câmaras cruéis,
direi que sim:
que conheci a calidez da tua boca,
que provei o mosto escuro e tenebroso
dos teus lábios,
que apartei a escuridão que sela o arco
dos teus dentes,
que beijei as delicadas cicatrizes dos teus flancos
e as colmeias onde é doce
o mel sinistro do teu sexo,
que pus flores de terror e puro
êxtase floral
nas masculinas e secretas reentrâncias do teu corpo,
e que o teu corpo de rapaz – ungido
a pombas e perfumes –
foi cercado por um fôlego puríssimo de rosas,
que tombámos como amantes despenhados
sobre as rosas, como aves
instruídas para o sangue dos espinhos.
Deste corpo afeiçoado às ervas
frescas dos sepulcros,
deste peito de águas turvas e pulmões esmaecidos,
destes fúnebres invólucros
de pele e carnação,
deste arcaboiço de mulher que agora
brilha sobre o pó
e é debruado pela cinza dos luzeiros siderais,
hei de levar unicamente as armações das alianças:
os liames que os teus ossos enlaçaram
nos meus ossos,
as manilhas e os anéis do nosso vínculo
obscuro,
os fios de prata com que atei a solidão da tua sombra
à solidão onde lampeja
e estremece a minha sombra.
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Luiza Nilo Nunes (1989), poeta portuguesa natural de Porto Alegre. É licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e Mestre em Estudos Editoriais pelo Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro. Traduziu e publicou a antologia Stigmata (Anjo Terrível, 2019) da autora chilena Teresa Wilms Montt e o livro Os elementos terrestres e outros poemas (Anjo Terrível, 2020) de Eunice Odio. Dirige as edições Anjo Terrível e a revista Tlön. Está inédita e encontra-se a preparar os seus dois primeiros livros.