André Pinto Teixeira (Lisboa, 1993), é autor, investigador em Estudos Asiáticos e tradutor de língua japonesa. Durante seis anos de vivência no Japão, compilou a sua primeira obra de poesia a ser publicada, Historiografia da Analepse, finalista do Prémio Glória de Sant’anna 2022. As suas principais influências literárias são o Borda d’Água, as Páginas Amarelas e o Decreto-Lei nº69/96 de 31 de Maio.
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ESTALEIRO
Como é possível
que o carpinteiro
que me deu vida
fazendo da terebentina
ossos, tecido e alma
seja agora uma tábua de madeira
podre,
um artefacto geriátrico
à porta de um armazém
abandonado
esperando o dia anunciado
em que funcionários públicos de macacão
virão num ruidoso camião
colher a sua crosta obsoleta
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BRONCODILATAÇÃO
Aí sufocava,
aqui sufoco também.
Pensando bem,
talvez a cura para a asfixia
não esteja na bulimia
voluntária, essa ingrata
travessia de emigrante excomungado,
mas numa bomba de asma
que caiba na mão
e exorcize
com o premir de um botão
o bolorento fantasma
do solipsismo enraizado.
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AGRIMENSURA
Tudo se resume ao território.
Viver é primariamente uma questão de gizar fronteiras,
avaliar onde começa e termina o meu espaço,
a minha marca na consciência colectiva,
quem tem direito a usufruir do terreno
que um pedaço de papel timbrado
garante ser minha posse,
conquanto nunca tenha trabalhado a terra
nem saiba o nome de nenhum dos seres vivos que palpitam
no seu útero.
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SALARYMAN
É isso, assalariado. Afoga as tristezas em latas de conveniência.
Dorme no comboio para completar a meia hora de sono nos hotéis
cápsula onde te banhas em pintelhos alheios e te masturbas
com pornografia datada, longe, bem longe, da mulher que já não beijas,
não amas nem chamas por nome, e que decide, por capricho,
quantas migalhas podes bicar.
Mas olha, não te podes queixar: ela deixa-te o quanto baste
para o passe, para o fato, para os sapatos, para a gravata,
para a pastinha, para o relógio, para o porta-cartões,
para a bebedeira coagida, para o champanhe no cabaret,
para o comprimido anti-ressaca e qualquer outro paliativo que te deixe
deixar de ser piegas. És um trapo, homem. Estás para aí vergado no umbral
da karōshi, dia sim dia sim, e nunca te ocorreu ser capa de jornal?
Ah, quão bela é a vida da formiga corporativa.
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O DIA EM QUE MORREU MIURA
São dez da manhã. Na parede de um hotel sem nome,
um relógio excessivo diz-me que são uma e vinte e cinco.
Não sei se é o meu pâncreas que está com jet lag
se foi uma qualquer hecatombe que fez os ponteiros pararem:
um terramoto, uma crise financeira, uma cantora que perdeu
a virgindade. Tudo são boas desculpas para desacertar o tempo.
Da plataforma húmida, fito uma cadeira de escritório vazia
num misto de apreciação museológica e curiosidade televisiva.
Ninguém se senta na cadeira. O ecrã do computador pisca
espasmodicamente, como que denunciando o meu pecado voyeur.
É Julho, faz mais calor que em Vénus e a chuva não cessa.
O Miura matou-se mas as lojas continuam abertas.
O comboio para Fuchū Honmachi chega dois minutos atrasado.
Um velhote sem máscara cospe para uma faixa de braille amarela
e entra na carruagem. As portas continuam abertas à espera de um sinal
dos dias. Um corvo balofo pavoneia-se galante pelo betão.
Não sabe se há de invadir a gaiola dos humanos ou permanecer livre
nas estruturas metálicas que o homem esculpiu para censurar a biologia.
Um último repto, um gesto de luva branca e um apito.
Com uma panóplia de artigos de cem ienes, pode um maquinista
selar o destino da locomoção biónica qual Senaqueribe ordenando aos assírios
o cerco de Jerusalém. Não é um poder que deseje nem a mim nem a ninguém.
Quem tem tamanha responsabilidade em suas mãos acaba com elas invariavelmente tingidas,
e eu hoje só quero chegar ao anoitecer com uma frequência cardíaca de 75bpm.
Nota do autor: poesia extraída de HISTORIOGRAFIA DA ANALEPSE (2021).