Cedo cedi ao mundo as madrugadas E à noite me entreguei em sombra.
Do mundo queria todas as utopias Todas se perderam Cinza na ruína dos dias.
____________________E assim, que fazer de mim?____________________
Apavora-me O ruído das fontes O marulhar das horas O gotejar do tempo
Passando impassível Sem me olhar
Sem escutar meu grito Sem tocar meu choro.
_______________E assim, que fazer de mim?_______________
A idade decompõe-se. Fracções. Instantes.
A memória multiplica os dias.
Lugar semi-breve Marcado em mim.
O espaço-tempo converge e colapsa.
Sufoca-me O Espaço.
Excede-me O tempo.
Não sou mais
que um
ponto
.
S
O
N
H
O
.
.
.
Como areia escorrem letras,
Estilhaços. Versos de vidro e de aço.
Instável O solo que sustem os dias.
Volátil O chão que suporta os passos.
Este tempo que me torna Palavra de pedra
Ânfora quebrada Desalinhado linho.
E_____ s____ t ____ r____e ____m____e____ ç_____o.
Como se fosse tempo Recém-chegado,
Como se fosse dor Recém-nascida Em permanentes águas.
Bago de uva sem rosa Meu corpo-urze.
Aro de fogo circular Cingindo meu redundante pensar.
_____________________E assim, que fazer de mim?_______________________
INSÓNDÁVEL DISTÂNCIA DO ABISMO
Da sombra sou a profundidade
A raiz negra da escuridão alastrando invisibilidade
Do tempo sou o arco que se dobra
O difuso contorno de um vestígio longínquo
É insondável a distância de um abismo
O alongamento do tempo tangido num rasto invisível
progressivamente distante
Não são os séculos que nos formam
numa narrativa de irremediável ausência
É a divergente equação de uma incerteza
caminhando contra o esquecimento
«Não olhes para trás
Nunca olhes para trás
A memória é um divino inferno de horrores»
É intangível a superfície de um reflexo
que na sombra se oculta por completo
iniciando incomum movimento
distanciando o tempo
É incalculável a extensão de um precipício
que se mede numa escala de fissuras
na dimensão dizível de uma ruína
brecha a brecha
na pedra rasgada
É inegável a fragmentação do solo
A segmentação irrefutável das épocas
A fissura que rasga o corpo
A MISTERIOSA FRAQUEZA DO ROSTO HUMANO
Não compreenderás a misteriosa fraqueza (que te confronta)
Não reconhecerás sequer o rosto
Não distinguirás, em difusa bruma, nenhuma utopia (evidente)
Nem uma única aspiração
Entenderás que existes, existes apenas,
E que, brevemente, também essa existente continuidade cessará
Sentirás, então, que presságio algum te estava destinado
E que era a ti, somente, que incumbia determinar o caminho
(Exceptuando, talvez, os contornos dos atalhos incontornáveis)
Perceberás, tardiamente, a instabilidade do percurso que percorreste
Escutarás o progressivo ruir dos territórios (que não poderás deter)
A iminente insurgência de um tempo absurdo
Como Sartre, compreenderás a frágil existência do destino figurado
Ser Nada, senão a razão dialética de uma responsabilidade crítica
Recordarás, enternecido, a candura inaugural
E, por um brevíssimo momento, serás o tempo pleno
A remota idade, a vida remotamente feliz
A época precedente à divergência das faces
Perceberás, mais tarde, a debilidade do sonho humano
Sentirás o progressivo desfazer dos fragmentos (que não saberás reter)
O gradual elevar do rosto inanimado
O levantamento de um tempo onde nenhum regressivo caminhar Te poderá regressar
Da vergada silhueta que (unicamente) subsistirá
Não reconhecerás sequer o rosto
A NOCTURNA VIGÍLIA DO PRANTO OCULTO DAS SOMBRAS
As sombras invadem um mundo como hordas semblantes
Povoam abandonados espaços
Apossam-se na escuridão da escuridão da luz errante
Em taciturno caos avultam-se decrépitas figuras
Silhuetas de destituídos contornos
Esbatidas no retraçar de um símbolo inscrito em infinitos círculos
Cingidas, as sombras agigantam-se, inclinam-se sobre o corpo, abatem-se sobre a face
É íngreme o caminho conducente à ascensão
A nocturna vigília do pranto oculto das sombras
As sombras apoderam-se da razão como hordas errantes
Avolumam-se no obscurecimento da memória
Apartam da luz a luz semblante da escuridão
Iluminadas, as sombras são labaredas insanas
Silhuetas esparsas de um fogo
Incêndios ocultos no corpo
É inquieta a noite que se estende num sibilar de vento infame
É débil o desígnio ocluso que se sente silêncio impronunciado
Silenciadas, as sombras arrastam-se, contraem o rosto, desabam sobre o corpo
Árdua é a crisálida do monocromo de uma lágrima
A nocturna vigília do pranto oculto das sombras
DO AMOR IMPOSSÍVEL
Do amor impossível diz-se invisível sua inevitabilidade
Como te dizer deste amor intransparente, que, sendo evidente, visível não é
Como incandescer tal translúcida chama
O amor é sempre imprevisto, sempre surpreendente, sempre-sempre indeclinável
Como negar a incerteza que se oculta na tua necessidade
Sinto-te num sonho profundo, memória num tempo-porvir, espera sem sequer
suceder
Do amor impossível diz-se visível sua impossibilidade
Da descrença e das suas invisibilidades ocupam-se os passos das sombras
Num desvendar de névoas desnudo tua claridade, corpo-contraluz contendo minha
densa escuridão
Do amor impossível digo ser visível sua inevitabilidade
Como contradizer este luminar sentir
Como extrair a rara luz da luz exacta
foto do autor por José Lorvão
*
Filipe Campos Melo, Nascido no Porto, Portugal. Impróprio Poeta, dele se diz cedo ter cedido ao mundo as madrugadas e à Poesia as sombras. Percorreu longas noites na Universidade de Coimbra. Consta ter editado e de tudo o mais se desconhece – é insondável a distância de um abismo que se mede numa escala de fissuras – Assim disse Mallarmé – nomear um Nome é banir a maior parte do prazer suscitado por um Autor porquanto esse prazer consiste num processo de revelação gradual…
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Curadoria de Tiago Alves Costa.