Margarida Vale de Gato traduz, escreve, é professora auxiliar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e investigadora no Centro de Estudos Anglísticos da mesma instituição. Transpôs para português Henri Michaux, Nathalie Sarraute, Yeats, Charles Dickens, Mark Twain, Marianne Moore, Jack Kerouac, Sharon Olds, Louise Glück, entre outros. Doutorou-se em 2008 com uma tese sobre a receção de Edgar Allan Poe na lírica portuguesa da segunda metade do século XIX. Tem publicado obras académicas nas suas áreas de especialidade como Translated Poe e Anthologizing Poe (co-organização com Emron Esplin, 2014 e 2020). Na vida literária, contam-se os livros de poesia Atirar para o Torto (2021), Die nicht reklamierten Reste. Lyrisches Handbuch des Übersetzens (com a poeta e tradutora Odile Kennel, 2021), Lançamento (2016) e Mulher ao Mar. Este último, publicado inicialmente em 2010, é um projeto poético com atualizações periódicas (Mulher ao Mar Retorna em 2013 e Mulher ao Mar e Grinalda em 2018); Mulher ao Mar Brasil (2021) é a sua primeira encarnação transatlântica.
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Marinha
Nem aranha nem sereia, antes fora marinheira,
mas por costume da terra, fiquei sendo pescadeira
a ver da areia o mar, o homem levando a barca.
Nem urdir nem cativar, antes queria navegar,
mas por costume da terra, me pus peixes a contar,
a ver da areia o mar, o homem levando a barca.
Mas por costume da terra, fui de redes lançadeira,
tal a renda, densa, onda, que levantou como fraga;
a ver da areia o mar, levando o homem na barca.
Mas por costume da terra, me pus corda a enrolar
tal essa renda da vaga, um vale branco a cavar,
a ver da areia o mar, levando o homem na barca.
Até a renda na água se soerguer como fraga,
caindo o casco ao vazio, partindo tábua na vaga,
a vir à areia o homem, levada no mar a barca.
Até a renda na água um oco de espuma cavar,
a vaga cobrindo tábua até a marca apagar,
a vir à areia o homem, levada no mar a barca.
in AAVV, Penélopes. Bairro dos Livros, 2021
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Álcool
Fresco e útil toldo que ao mundo
luz subtrai, fecho do feixe que ateia
a célere imagem eclipsa a ideia
desconjunta, aquém, díspar do fundo
e da frequência alta que distende
disso que vibra lá e à vista de outros
é ínfimo, assoma fero monstro
monstro belo, qual que seja, te rende
te expulsa de proporção invulgar
comensurável, por mais que ínfima
é grande afronta ao infinito. Assíncrono
torna o corpo: beber e errar o mar
te dobra a sede e pedes nessa fímbria
pouse douda nau, coral do sono.
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A Malinche
1.
Marina, la que yo sempre conmigo he traido
escreve-o a seu rei Cortés, meu concubino
aquele que me traz me trai, aportou num barco
me recebeu por escrava me trocou por dote
me ofereceu e retomou quando me viu útil
no interceder da fala nesse jogo bizarro
de telefone avariado
em que participaram:
um padre (Aguilar), três línguas, o temido
Moctezuma, o soberbo meu amo e uns quantos
caciques das terras, funcionando assim: Cortés
falava para o padre, o padre em maia para mim,
eu em náhuatl quer para o imperador quer
para outra gente que de bom grado trocava,
como eu, os astecas, seus altares de sangue
pelos cristãos e o deus único que são três
batizaram-me de Marina e em revanche
chamaram os índios “o Malinche” a Cortés;
como eu, que já fui Malintzin, a cativa
que agora é um híbrido, um corpo
estupro, a mãe de Martín o mestiço
do México, a quem os caciques temem
e as mulheres sibilam la chingada
e já esquecem os filhos levados pelo tirano
anterior e dizem que eu trouxe traidor
mais ímpio, a varíola, que por ouro
me despi, não honro a raça (mas como?
se morreu meu pai, me vendeu minha
mãe, se o abandono foi minha senha
o tráfico a minha vantagem, a dual
língua meu passe) que “não as represento”
mas qual entre nós não se sumiria já
criada para desembarcar rainha
qual de nós não sofreu de redução
à míngua, qual de nós, chingada, não teria
se pudesse, trocado de mãos e de língua?
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2.
Os meus ovos, logo os pus na cesta
da indiferença do ego—da equi-
distância da sorte; se nasci
nobre, me enjeitaram por molesta
me tomaram por morta, por cativa
moeda, me passaram entre reinos
donos, credos. Por minha parte brandi
sobre um império dotes de linguista.
Quando com Cortés de raspão passámos
no retorno da conquista pela terra
de onde parti, a mãe velha, o irmão
que herdou—deixei-os gratos, pasmos:
nada de nativo me era congénito.
Eu pude ser real na abdicação.
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Teoria do Apego
para Rita von Hunty
Nós que colocamos o amor, peso
sobre liquidez, flutuante incêndio
ou ilha-archote entre rodilhas
de querosene, à mercê do amado—
seremos todas nós pessoas filhas
pelos pais destratadas? Nós
que fazemos planos de inundação
do outro, afogamento próprio, não
pregamos olho, vigias do alheio
ansiosas, arquejantes de afã
e desvelo, de insano receio
de abandono, fomos abusadas
na infância só que o ignorávamos?
Ou eram nossos pais iludidos
e mentíamos à fotografia
a pedido: “sorri, beleza” e cada
um ia à sua vida? Ou só há
infância antes de se articular
a tristeza? Ou se calhar estávamos
ali irradiando no muro estreito
sobre o tanque grande circular que
fazia as vezes de piscina e, como
as pedras, víamos tremelicar
na água a nossa outra cara, séria?
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Nas traseiras da cidade ocupada
para a Raquel
[depois de O Silêncio de Ingmar Bergman]
Quando a vimos pela primeira vez
pensámos que já tinha morrido
—a nossa irmã— não prevenindo
que seríamos o que ela fazia.
Nas traseiras da cidade ocupada
batendo à máquina num quarto
cujas janelas todas vedam
uma língua alheia
à que nos habita
a beleza existe
como nunca na desfiguração
moral, no desmaio
da esperança aleijada, excessiva.
É-nos a língua estrangeira cifra
e surto de esquisito consolo.
A crueldade existe
e não fomos nós quem a inventou.
A luxúria existe
e não foi por termos nascido
foi haver fome, incontidos vícios
blindados lábios, cândido calor
embaciado, calar que nada
ouve, é a nossa irmã
que entra no bar de casaco fino
e nós que não prevenimos
o bruto penetrar de corpos
os furos de chumbos repentinos.
Quando a vimos passar o vestíbulo
a entrar para o banho, a descer
o vestido, a exibir ao espelho
as nádegas de escultura
soubemos a partir daí
que a nossa mãe era diferente.
O conflito torce-nos
entre fofas almofadas
uma brancura insuspeita
uma aguda tortura.
Saímos para as traseiras
do quarto, na cidade
ocupada, arma de brincar
na mão, divertindo o dilúvio
no olhar, achando
o bom velho senil
e a caridade existe
mas é assim.
Nós os anões aos pinotes
procuramos o ar
Enquanto o abandono
com pernas esguias e claras
ao apito da locomotiva
marcha nas traseiras
a cidade despe-se
de membros válidos.
Nas traseiras da cidade
no interior das couraças
nos contentores do degredo
vive-se a guerra, travam-se
as mulheres
com suas soluções
de rancor e abrigo.
A infância trilha a solidão
com os passos precisos
in Atirar para o Torto, 2021