Maria Quintans _ Poeta, dramaturga, faz parte da criação da Revista Inútil, onde foi directora editorial. Publica em 2008 o livro de poemas “Apoplexia da Ideia”;em 2010 “Chama-me Constança”; em 2013 “O Silêncio”; em 2014 “A Pata da Cabra” e em 2015 “Décimo terceiro andamento & Chama-me Constança”. Em 2019 estreia-se como autora na Assı́rio & Alvim com o livro “Se me Empurrares Eu Vou”. Organiza, em 2012, a antologia poética “Meditações sobre o Fim -Os últimos poemas” .Inicia-se na escrita de dramaturgia em 2015, com o monólogo “Décimo Terceiro Andamento”.Escreve em 2016 “Este não sou eu”,peça infanto-juvenil. Em 2020 escreve ‘A Síndrome da Culpa’e também a peça ‘Os Demónios Não Gostam de Ar Fresco’sobre o universo de Ingmar Bergman. Os seus poemas estão incluı́dos em várias antologias, portuguesas, brasileiras e espanholas, e em várias revistas.
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entre a música e deus não há diferença.
deus encosta-se ao parapeito da janela e olha para cima, para si
mesmo, e vê-se espelhado em cada nota.
épreciso ser deus, disse ela.
Se me empurrares eu vou _ Assírio & Alvim
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a todos os nomes que do pânico nascem dou um corno
para ficar atrás da porta e
um chumbo de mercúrio para a morte
a todos os poetas dou uma mãe — a minha mãe — arrancada aos
ombros do meu desgosto
a todos os homens dou o meu sangue inundado de eternidades
provocatórias
uma ruptura na garganta onde todos os dedos se espalham.
Se me empurrares eu vou _ Assírio & Alvim
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asa frágil de um pensamento nódoa.
o poema é um osso escolhido pela memória.
Se me empurrares eu vou _ Assírio & Alvim
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III
Descer à terra e provavelmente, de bruços, encontrar água. Criar no espinho a mão e a
casa. Abrir a carne com os dentes.
Voltar a andar distraidamente até uma parede branca e contemplar a pele cinzenta do
silêncio.
Abrir os pulsos até ao mar e deixar crescer a violência dos búzios.
Descansar mais além com os que escapam ao aguaceiro da loucura.
Saber que o viajante é um ponto tirado à pressa na costura do tempo.
Na varanda, retornar ao excesso da imortalidade entre uma coca-cola e um cigarro.
Só custa a dor a romper na fenda do sótão.
Repara: não custa nada.
Revista Colóquio Letras_ Nº 209 – Fundação Calouste Gulbenkian
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os olhos cansados – escuta – os olhos sem pálpebras à volta das maçãs do rosto no alfabeto
dos poetas – escuta – a mãe de um enxofre ingénuo e a máquina a girar de volta da cabeça
pequena demais para tanta imagem – não – a fogueira é mais insurreição do que um dedo
apontado ao futuro – escuta – o som é um cão a ganir na linha do comboio à espera da lua
onde toda a urgência é seca e de terceira-classe
o que os poetas dizem remexe o corredor da terra como um copo de vinho entornado na
mesa da dor – escuta – os mortos encantam-se com as palavras do silêncio – ele próprio
a morte-ressuscitada num balde de lixo vingativo – a semelhança entre um cigarro e o
minúsculo buraco na camisa do sonho – ouve – a inocência é um lençol de mar a gemer
entre a noite imperdoável do amor difícil – abre a porta – escuta – falemos de alucinações
e do método dos cavalos para chegarem inteiros aos estábulos
os pássaros – não, ainda não – os pássaros não –
os pássaros, sim, unidos pelas penas na violência dos homens – ser a metafísica do
oxigénio – o dedo a lavrar os cabelos com a insistência da mulher com um filho nos dentes
e o poema – escuta – o poema na provocação das palavras
onde vais? – escuta – só isso – escuta.
Revista Colóquio Letras_ nº 209 _ Fundação Calouste Gulbenkian