A noite ganhando espaço, rodando inteira,
esticando os dedos no esfumado.
Agora tudo se confunde e se estreita, caindo
sob a claridade delimitada
para o interior de um sítio novo no mundo.
No poema ficou o mais secreto.
Como se eu varresse para dentro de mim
silenciosamente
todas as coisas da casa.
*
Veste-lhe o casaco
o que está na segunda gaveta
da cómoda do quarto da casa
há-de servir
mais um mês
de versos pequenos coisas prosaicas
que nos empurram a vida.
Eu tiro o avental
da cozinha da casa do amor
em vez de escrever a escrita
pode esperar
enquanto descasco batatas
como a poeta
eu também não usava avental
até há pouco
não sabia que a poesia de verdade
estava
nas batatas mesmo que não se comam
é preciso descascá-las de mentira.
Vai vestindo o casaco
à menina
não há nisto poesia nenhuma
mas entre
o casaco e a menina
ela se ocupa do mais bonito dos versos
e já há algumas tigelas partidas.
[Veste-lhe o casaco]
*
Fecho o punho e nele guardo todo o som
do coração. Do peito
faço um pequeno dedal, que empurro de volta sobre a mesa.
As mãos existem para fazer do amor um músculo
de ponto apertado. Junto ao mar,
onde todos os barcos são também tristes e as linhas asas
baptizadas em tempestade,
um único pássaro atravessa a pele da manhã.
[Pássaro]
*
Rodas a maçaneta
com gestos precisos, repetidos,
ajustas os olhos à penumbra que
tudo esfumaça, entras
no silêncio inteiro
e total do dia que acaba.
Avanças cautelosamente para
dentro da respiração da noite,
para a encontrares
num tempo próprio do mar.
Ela dorme. E logo serena a casa
que desenhaste para seres com ela.
Regressas pelo mesmo exacto caminho,
arrastando os pés na água e
tacteando o cordão até ao umbigo
nesse lugar partilhado de pele e planta.
Observas com as mãos o ângulo
mais redondo do mundo e
das coisas nesse mundo. Ela dorme.
Ela dorme, ela dorme.
Cobre-se o sonho de margem
levemente chapinhada, traz-se o sono
flutuando pela cintura na rotina repetida.
Aguarda-se a manhã, é tudo mar
lá dentro. Ela dorme.
[Umbigo]
*
Estes dias,
escrevo pouco.
Dispo menos ainda,
volto à cama
sem, na verdade, sair dela.
Deixo um braço
a acomodar
a velha massa nua de ar
no meu lugar.
Onde estou
me fico em tudo.
Aventuro o dedo
pela pálpebra
entreaberta.
Chego mesmo a afundar
pregas e rosto
no redemoinho
areado
do lençol.
Torço a pele lisa,
que aguardava o demorado
despertar
do dia.
Ainda é preciso decidir
o que vestir
sobre a saudade.
[Saudade]
*
**
MINÊS CASTANHEIRA: Cresci no meio dos livros de Sophia, a achar que ser escritor era como ser outra coisa qualquer e que a poesia estava tanto nas coisas como na leitura que se fazia das coisas. Lia-se à mesa, à hora das refeições e sem Plano (Nacional) de Leitura, com os poetas e os contistas todos misturados ao alcance dos dedos. Havia pouco respeito pelos livros, portanto.
Embora o mundo nunca tenha andado à minha procura, como andou à procura de Ruben A., eu escrevo desde que me conheço. Mas quando cresci e percebi que a casa não chegava para guardar todas as histórias, resolvemos fazer um bairro inteiro de livros. Entre amigos, passei a ser uma das meninas do Bairro dos Livros, com poemas em seringas, os romancistas nas varandas e esculturas feitas com milhares de volumes a escandalizar os coleccionadores dos clássicos. Ficámos a conhecer os nomes às quintas gerações de alfarrabistas, um por um. Quando percebi que amava, escrevi-lhe um livro afogado em mar com versos de navegar à vista. Cheirava à laranjeira da casa onde cresci e negava Fiamma só para dizer Fiamma.
Os livros são coisas com que se fazem manifs, bibliotecas, bailes, revoluções e jantares de amigos. Os livros são lugares a que se volta como se volta a casa. Ou ao Manuel António Pina. Com os livros que herdei da casa da minha infância (e que a minha filha também herdará) construo castelos pela nossa sala, onde ela possa plantar o coração e a indestrutível leveza de lhes ser livre. Mais importantes do que os livros são as palavras que lhe invento. Quando ela nasceu, o escritório da casa deu lugar ao quarto de bebé. Em exílio, eu comecei a cortar versos na cozinha. A poesia está, por isso, em todas as coisas que ainda falta viver.
Curadoria de Tiago Alves Costa.