Mírian Freitas, mineira, reside em Juiz de Fora, doutora em Estudos de literatura (UFF), lecionou em Massachusetts (EUA), atualmente é professora do Núcleo de Línguas do IFSUDESTE/JF. Autora de Intimidade vasculhada (contos- Editora 7 Letras/Imprimatur), Exílios naufrágios e outras passagens (poemas- Editora Patuá), Caio Fernando Abreu: Uma poética da alteridade e da identidade- no Prelo- (CRV- Ensaio), foi uma das autoras da Antologia Lusófona I (poemas- Folheto Edições&Design, Leiria- Portugal). Organizou a antologia de textos Alento (Finalista do prêmio VivaLeitura), participou com narrativas e entrevistas do livro Mulheres: prosa de ficção no Brasil de 1964 a 2010 (Editora Ibis Libris), contribuiu com poemas para as Antologias Patuscada e Hilstianas I (Editora Patuá), Antologia da Casa da Cultura-Porto Alegre; premiada pela criação poética através do Casino Lisboa- Portugal. Possui textos publicados em revistas como CULT, CP Literatura (Editora Escala), blogs e sites de literatura como Revista Acrobata, Literatura e Fechadura, Desvario, Diversos Afins, Releituras, Bestiário, portal Cronópios e outros. Vídeo poemas em: https://www.youtube.com/watch?v=noNXPGTi_R / https://youtu.be/byCBWprTv7g
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SOBRE A MORTE E OUTRAS MORTES
A morte vem silenciar as mandíbulas do poema.
Devagar amassa entre os dedos palavra por palavra
despe as retinas feridas do pássaro
fala consigo mesma das águas longínquas, assustadas,
derrete os versos e a vaidade loura do halo poético.
Sábia que é, crava na garganta a síncope de um ritual.
Absurdos de comoção, golfadas de nuvens pela boca
espasmos, ventanias,
a saga da chuva, tempestades
sobre os arbustos, enfim, a morte.
O que esperar do gesto nítido
solitário, inventado,
reinventado
dessa personagem?
Conjeturas? Vilania?
Desamor?
A palavra não basta para ser morta.
Dedos azuis sobre a folha em branco
passam pela vida, madrugadas, memórias vãs
arrastam peitos, flores, nudez, mães,
tudo
para dentro das ilhas tateadas pelos cães ocidentais.
As vítimas da morte viajam para libertar o coração
e a mente das vidraças opacas.
Momento de solidão, de um exílio de pedras,
árduos olhos sobre o chão fundo
das ausências.
Nenhum rótulo, nada contradiz o destino inominável.
O poema jaz na terra além dos homens.
*
VIBRAÇÕES
No ar vibram as montanhas que iluminam
este tempo de primavera.
Montanhas escritas, trêmulas,
de sorrisos avançados
no amarelo ocre que arde o chão.
No alto, as árvores já preparadas para o verão
carregadas de temperos, frutos, cores e sentimentos
ocupam espaço na fé contínua que pensa o outro
no limite de um corpo
no hemisfério de uma alma
na transcendência de energias magnéticas:
eclipse lunar que escurece
depois ilumina
– infinita e inebriada-
a face verde da beleza.
Nas retinas de uma estação
reside a montanha prateada como mais uma lição
permanente e inconclusiva
de Deus.
*
SUPONHA QUE VOCÊ AME A VIDA
Suponha que você de fato ame a vida.
Ame a sua própria vida.
O que fazer com a vida do próximo?
O pedinte, o miserável, o arruinado?
Seu olhar reluz o ouro dos ancestrais emudecidos.
As bocas noturnas que pedem, sufocam-se na insistência
da antipalavra:
– variações e escassez de ternuras, sombras
no cume da montanha,
enquanto a neve estilhaçada pelo vento, cai
desnuda e branca
sobre o vácuo das mãos que imploram
por pedaços de pecados de um outro
que não fui, ou serei.
De prontidão, os lírios nascem e renascem do chão
como o jorrar do leite sobre as bocas e suas línguas;
línguas de pano e de algodão,
macias e afáveis,
feitas para driblar o percurso ingrato
da solidão.
De repente, no acaso inexistente,
generoso aroma inunda de cima para baixo,
a terra aflita, suas pontes e aviões desesperançados.
– Quem foi? –Foi Deus? – Quem foi?… O poder de Deus se manifesta nas mais
pequeninas coisas, como nas maiores.
Do céu, o milagre desabrocha a juventude de uma flor azul,
infinita em gestos de compaixão e misericórdia,
ninguém mais de braços cruzados.
Os vaga-lumes açoitaram a noite e suas tribos mais remotas.
Partiram o pão,
repartiram as nozes da Índia, também
os damascos adocicados do Atacama.
Todos agora comem e se fartam, e se morrerem amanhã,
morrerão cheios, repletos de intensidade e vigor
como os insetos.
(Os versos: “Quem foi? –Foi Deus? – Quem foi?… O poder de Deus se manifesta nas
mais pequeninas coisas, como nas maiores”, foram extraídos do Evangelho segundo o
espiritismo, FEB, 2013).
*
MÁQUINA DE FABRICAR ESQUECIMENTOS
Tantos nomes a imitar o silêncio
na combustão do pensamento em chamas:
– laços cortados do tamanho dos fios dos cabelos do vento,
não há mais razão para te precipitares no vazio das noites incendiadas.
Chove agora neste chão de vícios inertes e de frias esperanças.
Cadáveres escoltados pelo açoite das cabeças convulsas
balançam a cabeleira imortal e seus segredos além-túmulo.
A máquina de fabricar esquecimentos produz fórmulas rápidas
de apagar os nomes,
intocáveis nomes
que fulguram ainda em meu coração.
*
O ABDÔMEN DA FOTOGRAFIA
A lâmpada suja ilumina a parede escura da casa. Tento distrair
os olhos para desconstruir a memória, matar as serpentes
do pensamento que em mim se enroscam e assobiam.
De um canto ao outro, a incandescência da luz,
cega e sacode o coração. Fotografo o interior
dos poros da mente, abuso do único alimento
da superfície da terra. Distantes, as artérias envelhecem
como aves feridas. O silêncio explode no vazio que
está prestes a desabar diante da quase luz nenhuma.
O espaço de retratos abandonados esconde a face triste do avô,
a pele de vidro embaçada da avó, o interior do corpo,
a máquina fotográfica em ruínas, o peso de um brinco de ouro,
a almofada velha de tricô. É preciso pouca luz para definir um rosto.
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