Não posso com este silêncio!, disse a mulher, na outra ponta
do balcão, ao fundo. O silêncio com uma pena, um grilhão
a levá-la ao sufoco e ao reencontro do que se pretendia velado.
Se bem o disse, melhor o fez. Atravessou a sala, o longo corredor
por entre as mesas: passo estugado, cenho franzido, narinas de
podengo com vítima já debaixo de olho. Vítima também eu,
mas ainda não, com os olhos a levantarem-se das páginas. Onde
teria a merda do comando?, pergunta-se ela. Vasculha e volta
a vasculhar. Não desarma e empoleira-se num caixote. Vejo-a
(agora) simultaneamente perto e distante: continua empoleirada
no caixote, alcança o alvo com o rosto distendido, vitorioso mesmo.
A mulher, por fim saciada, volta o fundo onde sempre tinha estado.
Desinteressa-se da televisão que acabara de ligar. Ficamos apenas:
eu, o ruído nas minhas costas e o silêncio dentro de mim.
in, Negro Marfim (Edª Labirinto, 2015)
Da televisão escorri o desnorte de um tempo, esse emaranhado
de que os necrófagos sempre tiraram partido. Eu não sou o meu
tempo!, disse-te. Disse-te e as imagens continuaram escorrendo
num atordoamento de coisas sem princípio nem solução. Antes
serei barreira que te protege ou dique indestrutível atrás do qual
o permanecer se manterá. Sou talvez um objecto sem forma
definida e que, esquecido depois numa bagageira insociável,
acabará à espera numa qualquer secção de perdidos e achados.
À espera, mas atento! Eu não sou o meu tempo!, confirmei.
Sou apenas o vacilar de um olhar frágil, olhar que te fala, que
insiste em esboçar-te caminhos, enquanto da televisão continuará
escorrendo o desnorte deste tempo onde nunca estive nem estarei.
in, Negro Marfim (Edª Labirinto, 2015)
Nas cidades de onde venho
secam as árvores ao som das sirenes
e os pássaros, alucinados, buscam direcções
nas pupilas das crianças.
Nessas cidades tudo é pressa e desassossego,
enquanto os homens, imprudentes, desaprendem
a sublime auscultação da terra;
nem sequer o coração dos outros podem ler
ou o rumor inconsolável das águas
– para eles aquilo que apenas vêem!
E com um nó no peito desatado
pintam de harmonia um novo Caos
in, Pelo deserto as minhas mãos (Edª Coisas de Ler, 2004)
Hábil, imundo, na sua encenação obscena
devora o Abismo os Caminhantes, oculta-se nos flancos
estremunhados da madrugada:
com o visco do seu olhar seduz todos os desprevenidos
com a sua nebulosa voz enfrenta os cadáveres das estrelas
Tudo isso sabia eu, ou colocava como possibilidade.
E mesmo assim falhei. Iludi-me. Pensei que era como eu:
que debaixo de uma fragilidade poderias sempre esconder
a tenaz resistência ao que não vale. Sim, iludi-me!
Não reparei que não poderias defender-te
– cometi o terrível pecado da incúria. Depois…
divido entre a serenidade que sempre alcanço e o travo da culpa
por defraudar os que me enternecem
in, Pelo deserto as minhas mãos (Edª Coisas de Ler, 2004)
Toda a noite a lua
dançou na orla do palmeiral. Seus braços de fina prata
revestiam de brilho o vermelho da terra; armadilha de astro cego
na desordem do mundo
E toda a noite ela saltou, rodopiou, encenou a mais estranha
coreografia no silêncio eloquente dos céus. Inconstante lua.
Dissimulada. Vai-te imagem de mil abismos – tu que a tantos
enredas com tuas múltiplas faces. Vai-te. Vai-te sinal do efémero,
maga do instante – tu que na vida dos homens, sempre que queres,
entras e sais. Vai-te e não voltes mais
in, Pelo deserto as minhas mãos (Edª Coisas de Ler, 2004)
Atento meu olhar se revigora no cais sempre aberto
em que discorro. E sem o látego de impassíveis fantasias
ou de crenças usadas como socorro. À palavra me vou
dando no concreto que percorro. Observo ruas, rostos,
para lá de logros e madrugadas enganosas e sentado
no café insisto leituras que tento copiosas.
Mas se acaso, num inverno que já pressinto, relâmpagos
e trovões falsearem tudo o que vi, imune voltarei ao mesmo
tempo – indisfarçável véspera em que vivi. Atento meu olhar
se revigora neste cais, onde toda a cidade desfila eu eu,
sem máscara nem embuste, indago. Em cuidado me gostaria
para sempre, mas tal não posso neste ermo fustigado por duros
vendavais e monótona bonança. Que me fique a invendável
liberdade, listada a fogo com ferretes de esperança.
in, A irresistível voz de Ionatos (Edª Labirinto, 2009)
selecção de poemas por Tiago Alves Costa
*
Victor Oliveira Mateus é natural de Lisboa e licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica desta cidade. Tem oito livros de Poesia publicados dos quais se destacam: “Pelo Deserto as Minhas Mãos” (Coisas de Ler, 2004), “A Irresistível Voz de Ionatos” (Edª Labirinto, 2009), “Regresso” (Edª Labirinto, 2010) e “Negro Marfim” (Edª Labirinto, 2015). Tem também poemas, contos e textos de cariz ensaístico publicados em Revistas de Literatura e Antologias de: Brasil, Espanha, Moçambique, México, Equador, Itália, Porto Rico e Macau. Da sua atividade de Antologiador ressaltam as obras: “Um Rio de Contos, Antologia Luso-brasileira de Contos” (Edª Tágide, 2009) e “O Prisma das Muitas Cores, Poesia de Amor Portuguesa e Brasileira” (Edª Labirinto, 2010). Tem participado em Festivais Literários em Portugal e no estrangeiro, e sido membro de diversos Júris de Prémios Literários. Coordena atualmente a “Cintilações: Revista de Poesia, Ensaio e Crítica” (Edª Labirinto) e é cocoordenador da coleção de poesia “contramaré” da mesma Editora. Em 2013 foi-lhe atribuído o Prémio Literário Eugénio de Andrade pela União de Escritores Brasileiros do Rio de Janeiro e em 2017 o Ayuntamiento de Salamanca outorgou-lhe o título de Huésped Distinguido. É membro do PEN Clube Português a cuja direção pertenceu.
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