Marta Chaves (1978) nasceu em Coimbra e vive em Lisboa. É psicóloga clínica e psicoterapeuta. Desde 2008, tem vindo a revelar os seus poemas em diversas antologias poéticas e revistas de poesia. Publicou os livros Onde não estou, tu não existes (Tea for One, 2009), Pensa que deixou de pensar nela (Tea for One,, 2010), Dar-te amor e tirar-te a vida (Tea for One,, 2012), Pedra de Lume (Paralelo W, 2013), Perda de Inventário (Alambique, 2015), Varanda de Inverno (Assírio & Alvim, 2018), Perda de Inventário – edição revista e ampliada, (Corsário-Satã, 2020, Brasil) e Avalanche (Assírio & Alvim, 2021).
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CENAS
As pessoas são exímias a transformar-se
no pior que delas se espera.
A sugestão tem o poder
de fazê-las actuar sob o seu efeito.
Nem os espelhos familiares
as reconhecem.
Persistem como amadoras na novidade,
desempenham papéis que decoraram sem ler.
Depois, ficam soterradas na vergonha
de algo que lhes parece alheio.
Tão estranho e falso
real e assustado
o modo como se livram da dor.
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A QUATRO MÃOS
As pessoas gostam de novelos.
Em criança fazia novelos com a minha mãe.
Mantenho hoje, tal como na época,
que fazer novelos é desmanchá-los,
sufocá-los a quatro mãos.
Sentia o constrangimento do material
por forçá-lo a uma forma.
É isto que as pessoas fazem umas às outras
e aos novelos: actos de constrição.
Desmancham e enrolam,
vivem das meadas.
As pessoas fazem novelos
de modo a poder levá-los para todo o lado.
Quando lhes apetece, é só puxar o fio.
Há-os tão pequenos, mal se dá por eles,
e os mal feitos é um quebra-cabeças
encontrar-lhes a ponta.
Enganam de tão arrumados.
As pessoas vêem a língua
e não olham para os gestos.
Pensam no choro e não notam
o brilho. O correr das lágrimas
aprisiona mais que o olhar.
O novelo também conhece o tombo
mas nem sempre se desfaz.
O novelo aprendeu a cair.
A minha moral ainda me impede
senão dizia-vos: o mundo tem estado feio.
As pessoas alarvam como podem.
Ouço crianças que estranham estes tempos
e perguntam: afinal, como é que isto é?
Qual o sentido disto tudo?
Sento-me com elas
nas escadas que alguém partiu.
Temos degrau e meio
e ainda assim andamos às voltas,
enrolamos os pés pelas mãos
e os avós aparecem ao longe.
Não corremos, ficamos a sentir a saudade,
essa fruta madura que se desfaz nas mãos
se não a engolirmos rapidamente.
*
SER E NÃO SER
Entre mim e os livros na estante,
no espaço ocupado pela luz,
dão-se transformações
a que assisto quieta e calada.
Depois de olhar o ar,
cada palavra reflecte
o lugar invisível de onde veio o poema
ou o silêncio que passou pela casa.
A alma não escolhe a estação
nem prevê o detalhe do infinito.
Reparo com espanto infante
nos vestígios deste ritual,
os livros que não li
sabem de mim
e não dormem nunca.
*
MANTA DE RETALHOS
Bom conforto
o de as coisas perdidas
serem nossas para sempre.
*
SENTENÇAS
Reflicto sobre o tiro que dei na bala,
vejo a sede que pinga para o poço.
Ouço a porta do quarto batida pelo vento
e voo parada, tal qual a roupa nos estendais.
*