MANDALA NA BOLSA
Dinheiro para comprar
Paris, Berlim e Madrid
E pôr a render Paris em Lisboa
O Rio de Janeiro em Madrid
É pôr Roma a vender em Singapura
Transformar Vigo em Moscovo
A fortuna é esse ovo
Mescla de serpente com lobo
Letal se não entendermos que é
A alma que precede a coisa
Por exemplo as medidas de Lisboa
Além cidade
Inventando o fado para dentro das células
Imagem bruta, eu sei
Como quem diz é o fim da História
Como quem diz o dinheiro pode comprar tudo
Pode ser o complexo militar-industrial
Pode ser este pequeno almoço de hotel de três estrelas
Pode ser a dívida externa de todas as ásias em todas as
glórias
Ou todos os bancos em queda livre todos os fundos
especulados
Gente em carne e osso que ninguém vê
Hipoteca xeque-mate peão de fora
Por todo dinheiro que não existe
Menos a alma que o inventou.
*
OLHO DE GOYA
Os tempos davam tempestade
Forte em certas alturas
Da estrada
Vinhas do País Basco
Reflectindo todo o sul
Da semana passada
Depois, enquanto escolhias dois robalos
Falavas da infância, as férias
Chegado a casa, onde pudeste assentar
Tomaste consciência da importância de envelhecer
aquelas horas
Até teres mesmo de criar um novo emprego
Para poderes ajudar este poema
Pensas na cerveja de Bilbau
Vem-te à ideia Orson Welles e os pombos correio de
Euskadi
Espanha França e vice-versa
Mas sobretudo esse auto-retrato de Goya
Não se desviou de ti um milímetro
Nunca parou de seguir-te até ao fim da sala
Não, não tirou o olho de ti
Trazia dito topei-te
A partir de agora já não tens escapa.
*
BISAVÔ FRANCISCO ERNESTO
Há quem diga que foi sorteado o contemplado
O tiro, o acto heróico de José Júlio —
«Foi um acto heróico, o do Zé Júlio!»
Fez-se História, reza assim:
“Ao despedir-se a sós, Ernesto Góis chorou e pediu que
desistisse do seu intento, pois alguém se encarregaria de
livrar Portugal do tirano. José Júlio deu-lhe uma declaração
defendendo a União Sagrada e pediu que a desse a
conhecer depois da sua morte, pois estava certo que pereceria
perto com Sidónio.”
Etc, etc, ou etcetera…
Depois há quem se interrogue
: «Como é que aquela carta estava no bolso
de trás das calças?»
Passaporte para a cadeia
Verdade é que do bisavô Xico Ernesto
só me ficou uma foto
À imaginação, o meu avô, adolescente,
tomando a família pelos pulsos
Olhando Hitler ao longe, Franco mais perto,
Salazar presente
Estranguladas décadas in extremis a conseguir
Forçar, a suportar
O inclinado desvio
O beijo da morte
O cumprimento num tiro: «Foi o que foi…»
O herói da imagem, ou a imagem do herói
Pensar que tudo é melhor que nada
Vergada a coluna toda
A chegada à morte
Paralela.
*
PARIS, I’M SORRY
O ruído da máquina de lavar roupa
Parece só dizer a mesma coisa:
you sorry, you sorry, you sorry…
Sim, tem sido isto nos últimos dias, nos próximos dias
You sorry, you sorry, you sorry…
E pelos vistos arrasta a escrita…
Depois é o ruído da centrifugadora
Tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu…
Tarda o silêncio. Até ao regresso da modinha
You sorry, you sorry…
Algo se passa aqui entre mim e Paris
E não é nada desse amor-ódio antigo
É outra coisa, espécie de combinado amor-tédio
Só que depois acontecem os acidentes
Há quem se justifique com o magnetismo dos quartiers
De facto, tudo aqui se electrifica até ao medo
Dez ou vinte anos, tanto faz
Viverás aqui, vinha escrito numa tabuleta
que eu li em criança
A mensagem trazia mais dias que páginas,
seria impossível decifrar tudo
Também podia ser no gozo, boutade inconsciente
A cada coisa, seu tempo
Tal como esta máquina que me lava a roupa suja
Com pressa, compassa
You sorry, you sorry, you sorry, you sorry…
*
AO SONHO IMPUNHA-SE O CANSAÇO
Ao sonho impunha-se o cansaço. O cansaço descansava-me as forças. Ao sonho não impunha a menor resistência, poderia até dormir de pé. Sonhos impressionantes, sonhos impressionáveis, como a água. Nesse enquanto eu escrevia o sonho, esticadas as pernas sobre a secretária. Claro que se me inundava o chão da sala. Até via os peixes nadarem nela. No chão, debaixo dos meus pés, era como se estivessem num lago. A porta da varanda aberta. Não via como o rio vinha de fora. Para tirar as pernas da secretária, precisava mesmo despertar.
**
Pedro Góis Nogueira. Nascido em Lisboa, amante de todas as literaturas e poesias várias. Escritor para a gaveta desde os 15 anos, até que a escrita se tornou escultura. Escreveu um romance para mandar fora, ao que juntou a matéria da vida para ter as cadeiras suficientes da bolañiana universidade desconhecida. Em 2017, publica Estrada dos Prazeres pela Letras Paralelas (Campo das Letras). Com a mesma editora, em 2018, publica os contos de Praia Lontano. É o ano em que Lisboa fica para trás e muda-se para a Galiza, primeiro vivendo em Ourense, depois em Ribadavia. Faz então apresentações em Vigo, Santiago de Compostela e Ribadavia. Participa activamente com o seu trabalho na Revista Palavra Comum. Entre outras actividades fez jornalismo desportivo, rádio, cinema, trabalhou em turismo, e o resto preferia ter-se esquecido. Ama a bicicleta, o cinema, as belas artes, história, filosofia, astrologia, rock’n’roll, jazz, futebol e cerveja, entre outras partes. Crê que se existe a perfeição, ela está algures entre Billie Holiday e Nicanor Parra.
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