O livro das mãos (2017),
de Gisela Ramos Rosa
Abro as mãos e encontro as linhas
o espelho que me liga às tuas mãos.
Unimos os gestos ao ritmo de corpos
dobrados pelo silêncio que se interpõe
ao ruído do mundo.
O meu gesto e o teu abrem o mundo
com as mãos
Alma, buscarte has en Mí,
Y a Mí buscarme has en ti.
Santa Teresa de Ávila, in Seta de Fogo
Escrevo para sarar a asa ferida da origem
e num movimento de dança liberar o impulso
da imagem incompleta com afecto
venho a esta casa reconhecer o fogo onde
construo voos serenos que trago na percepção
dentro do espaço, um espelho de íntima sombra
na claridade de um instante
e porque à memória não devo o sacrilégio
do fogo roubado, encontro a flor inesperada
da montanha no momento em que tudo se toca
ainda que na outra asa surja a cumplicidade
dos pássaros embriagados pelo fogo da rota
as mãos abrem e sagram o invólucro branco
que me guarda
e volto ao entendimento da pele, em certos dias
em que o fogo irrompe em transparência e isso
bastará para abraçar com subtil afago todos
os signos da bondade
Levem-me, digo às palavras que me acolhem
não esperem pelo pensamento que tolhe e conduz
a expressões reguladas e contraditórias. Abram-me
a porta do verso que é frente em simultâneo gesto.
Levem-me pelo verso até ao poema e suprimam
a gramática que corrige e diferencia. Escrevam-me
sem mapa sempre que puderem e sem que eu dê
conta desse imenso gesto
Amo as pedras como se fossem nomes
anteriores a mim. Pego nas peças circulares,
infinitas contas de um cordão.
O tempo percorre as minhas mãos.
À minha mãe, a todas as mulheres da Terra
As raízes da Terra dançam na pele
do mundo, elas sobem descem, procriam
são prismas iluminados que desbravam
alimentam conciliam
Elas tocam o chão com pés de água
e não repousam na ambição
do húmus, em seus grãos prosseguem
já os troncos com asas de destino,
altas elevam-se num corpo de tesouro e mistério
As raízes da terra são espelhos de água
que atravessam os rios num leito de silêncio
são canoas com jacintos da estação
elas são a alegria côncava do mundo
Impossível é dissociar as mãos da construção
do mundo. Afloro quase sempre uma palavra abro-a
lentamente com as mãos até que o ritmo
do poema se instale reverbere uma imagem clara
e se desfeche. Escrevo como se estendesse raízes e sou
um ramo adormecido alcançando em silêncio.
Nas mãos repousa o primeiro dia, a primeira vez
de todas as coisas.
Selecção de poemas por Tiago Alves Costa.
Gisela Maria Gracias Ramos Rosa (1964, Maputo), tem formação em Relações Internacionais, é Mestre em Relações Interculturais e pós-graduada em Migrações Etnicidade e Racismo. Profissionalmente foi perita forense durante três décadas. É poeta e tem colaborado em várias Antologias e Revistas de poesia, nacionais estrangeiras, de onde se destacam as revistas Mealibra, Saudade, Sulscrito (algarve), Cultura Entre Culturas, Pena Ventosa, Cintilações da Sombra (I e II), Clepsydra e DiVersos, Alquimia do Fogo (Huelva), Alquimia da Terra (Huelva), Alquimia da Água (Huelva), Correio das Artes (João Pessoa, Brasil) Magazine Eufeme (2017), CHICOS 50 (Cataguases-Brasil, 2017) IBERIS, revista Hispano-lusa de eco-crítica Logos Biblioteca do Tempo nº 2 Jan.2018. O seu primeiro livro foi um diálogo com António Ramos Rosa, com o título Vasos Comunicantes, publicado em 2006 (ed. Labirinto) e reeditado em 2017 (Poética edições), em formato bilingue português/espanhol. Em 2013 publica tradução das manhãs (ed. Lua de Marfim) que virá a ganhar o Prémio Glória de Sant´Anna em 2014, ano em que veio a ser editado o seu livro as palavras mais simples pela Poética edições. Participou na organização do caderno de poesia da Revista Cultura Entre Culturas nº 4, Outubro de 2011, dedicado a António Ramos Rosa, onde intermediou e colaborou com trabalhos fotográficos e escritos sobre o poeta. Tem organizado várias exposições de desenhos de António Ramos Rosa desde 2011. Sobre o mesmo poeta prestou igual colaboração, em co-autoria, para um caderno da Revista Nova Águia (nº 13, 2014). Coordenou a colecção de poesia Meia Lua (ed. Lua de Marfim) até ao sétimo livro (2011-2013). Organizou a Antologia Clepsydra (2014) com a chancela da editora Coisas de Ler dando início à colaboração com esta editora, como consultora da colecção de poesia Clepsydra. Em 2017 foi reeditado em e-manuscrito, o seu livro tradução das manhãs (escritores.online) e o título, o livro das mãos (Coisas de Ler, 2017) Prémio Glória de Sant´Anna 2018. É associada da APE e do Pen Clube Português.