Questão de timing
O chá de Xangai
Não é o mesmo
Que o de Londres.
Nem a hora é a mesma.
A língua, a louça, a cerimônia
Estão longe de serem as mesmas
(a 9.191 km de distância).
Então, qual a chance do chá das 5
Acontecer em Xangai?
É só atrasar o relógio em 7 horas
Para Xangai ficar no mesmo timing do Big Ben
Apesar do fuso-horário, a infusão é a mesma.
E depois do tempo necessário,
Os chás ficam bons. Tanto lá como lá.
Se atrasar… é só tomar outro chá para esperar:
O de cadeira.
*
Solidão
Solidão é silêncio
De estimação
É tecer casulo
Com seda própria
É manter a porta
Aberta para dentro
E, mesmo assim,
Não estar
Pra ninguém
Solidão
Deixa a gente
Preguiçosa
De gente
*
Voltando
A porta resiste
À minha entrada
Os móveis da sala
Estranham a minha
Presença
As paredes olham
Desconfiadas
O sofá não lembra
Do meu corpo
O silêncio das coisas
Tem o peso
Do esquecimento
Voltar é sempre
Difícil
*
Poeta primata
Meus primórdios não prometiam
Uma evolução lá muito primorosa
Quem me via logo previa,
Que boa coisa daqui
Não sairia
E não é que as previsões se confirmaram
Mas, enfim…
… Graças ao polegar opositor,
As primeiras palavras,
Com muito atraso, foram escritas.
Fiquei a meio-caminho da evolução poética:
Um poeta erectus, apenas.
Há milhões de anos de distância de meus pares:
Os poetas sapiens.
Com suas palavras complexas
Seus pacotes de referências
Sua relevância literária
É! Estou longe disso.
Sou um poeta-primata
E, detrás das grades das palavras,
Observo os visitantes desse zoológico humano
Para, depois, escrever alguma poesia barata.
*
Vem brincar
Escrever é parque de diversão.
Deixa a tua criança correr.
Deixa a tua criança brincar.
Põe uma palavra no papel (qualquer palavra)
Depois põe outra
E outra…
Muda de posição.
Joga pra cima e deixa cair pra ver se quebra.
Se quebrar pode ser poema.
Se não, é prosa, com certeza.
Gira a palavra na roda-gigante da tua imaginação
(A vida é um sobe e desce, por que escrever não seria?).
Desliga os pontos, solta as vírgulas, abre outros parágrafos.
DESRESPEITA AS GRAMÁTICAS.
Fala que é licença poética, que assim pode.
Tudo o que é livre
Cabe num livro
*
De joelhos para a poesia
O vendedor disse que poesia era na prateleira debaixo
Que jeito, senão ajoelhar?!
Não me importo
Desde que me entendo
Sempre reverenciei a poesia
Poesia é assim
Ou está na prateleira debaixo
E te deixa de joelhos,
Ou na última, lá em cima,
E se mostra inalcançável
Uma coisa é certa:
Nunca está fácil de pegar.
Só esticar a mão, e pronto
Poesia se preserva
É reservada, tímida.
Não vive por aí toda prosa
Por isso, não se chega a ela impunemente
É preciso certo esforço
Que jeito, senão ajoelhar?
**
Armando Liguori Junior nasceu em 12 de dezembro de 1964, em São Paulo, Brasil. Formado em jornalismo pela PUC-SP, e artes cênicas pelo Teatro-Escola Célia Helena. Trabalha como redator, roteirista e ator. Tem três livros publicados; um de poemas (2009), TERRITÓRIOS pela Editora Scortecci, outro de dramaturgia: TEXTOS CURTOS PARA TEATRO E CINEMA (2017) pela Editora Giostri e A POESIA ESTÁ EM TUDO (2020) pela Editora Patuá. Escreveu, adaptou e atuou em diversos espetáculos da CIA OS TIOS (da qual é um dos fundadores), entre eles: DENTRO DO BOSQUE do filme Rashomon de Kurosawa e MATTEO PERDEU O EMPREGO, do livro de Gonçalo M. Tavares. Atualmente mantém um canal no YouTube (com o nome Armando Liguori), dedicado a leitura poética de diversos autores brasileiros e estrangeiros. Neste ano de 2020 completará 1000 poemas lidos.
Curadoria de Tiago Alves Costa