Angel Cabeza é carioca. Autor de “Canção para os seus olhos e outros castanhos” (Urutau, 2019), é poeta, cronista e atua no mercado editorial como editor, coordenador, produtor gráfico e projetista. Já colaborou com diversas revistas e jornais. Apresenta o programa “É sério isso?” na web rádio Arte Viva — programa sobre curiosidades acerca da biografia de grandes personalidades.
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Cavidade
Coloca meu nome entre dentes
e trinca.
Amacia o escuro
que nele mora
e rememora o gosto acetoso:
uma manhã envernizada
e virgem
devorando a extensa
e já vazia noite.
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Antes de dormir
Antes de dormir
necessito que suas unhas afastem
o desespero da minha pele,
mas a lógica acredita
mais em psicanalistas e comprimidos
do que na bainha das mãos soprando
a curvatura da escápula.
Antes de acordar
necessito que a voz
adoce o chá com silêncio,
mas a lógica
não entende nada de chás ou silêncios.
Sofremos, decerto,
mas ainda que a iminência
de razões quebre nossa boca
continuo acreditando que seus ombros
são o único lugar no mundo
onde o tempo e o fim não imperam.
Neles perduro.
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Vulto
O vulto
das suas mãos
ilumina
a surdez
dos meus pés.
*
Científico
A ciência comprova que os excessos
prejudicam o coração,
levam ao precipício da existência,
mas nada diz sobre a influência das tuas mãos
em minhas artérias:
pequenas explosões de carne
que espocam no cerne;
máquinas que interrompem
a brevidade dos dias.
*
Chiado
I
Encosto meus
ouvidos no teu busto
e ouço algo de Mozart:
pulsante desespero de cordas.
II
Há qualquer coisa de carnal
num violino,
essa analogia de contornos:
a frondosa silhueta feminal,
o arco ereto, seivoso,
as cordas queixosas pela tensão de melodias,
o afago da crina nos cabelos de aço…
Dois corpos se rompendo
numa partida repleta
de água e som.
*
Iluminação
Ela acordou e abriu lentamente as venezianas. Uma luz forte inundou sua face. Sorriu. Seus dentes me pareceram vitrais repletos de todas as cores, os mesmos vitrais que temíamos nas missas de domingo e registravam a beleza e tristeza da queda da carne ou ascensão dos santos. Seus olhos se fixaram em mim. Pensei em me confessar, mas estamos tão inflados de pecado que não há terço que suporte. Observei-a um pouco mais e seu fino corpo me pareceu possuir algo de Éden. Acaso foi Adão expulso por contemplar tal brancura? Ela sentou-se ao meu lado e pude então pousar minha cabeça entre suas coxas. Declinei em oração. Se isso significa algo, acredito ser a mesma iluminação alcançada pelos santos.
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