Poema verde
Não me peças para amadurecer
que não sou peça fruta,
sou peça de outra engrenagem,
e a vida não é árvore nem fruteira.
Depois ninguém sabe o que é a vida,
a vida vai-se fazendo,
ou vai-se sem mais,
sem chegar a ser inteira.
E eu quero continuar verde
como o mar, verde
como um poema de Lorca, verde
como o verde dos meus olhos, verde
apesar do comprimento dos dias, verde
às vezes de raiva, que com duas patas
também se pode ser cão, verde
por saber o que é a tristeza
e a inutilidade da alegria ao ponto de cortar os pulsos,
mesmo quando temos vários corações a bater fora do corpo.
*
Chá-dançante
Ao amor sustenta
a febre, a fome, a fervura,
a nervura da folha, a escolha
e em banho-maria a ternura,
que Roma e Pavia não se fizeram num dia
e os amores adolescem,
crescem, ficam viejecitos y de pelo gris.
Os corpos lembram boteros,
os pés arrastam os chinelos,
e já só dançam boleros.
Ao amor guarda-o
sem espelho e com espanto,
aprende dos corpos o esperanto
e perdoa, que ninguém é santo.
Difícil é ser feliz,
quando tudo se perde por um triz.
Ao amor evita
a rotina e o pleonasmo,
põe despertador,
acorda da sesta,
despreza a aresta,
entra na floresta.
Aproveita todos os crepúsculos
obriga-te ao encanto
preserva o pasmo,
a virtude do entusiasmo,
e a curiosidade dos gatos.
E como um gato namora a cidade
percebe os pássaros,
as sombras roxas dos jacarandás
e inventa sardinhas nos céus.
Ao amor conserva-o,
atenta no prazo de validade,
que nada tem a ver com a idade,
e come todo o amor antes que o amor acabe.
*
Realismo mágico
51 anos, 9 meses e 4 dias
foi quanto durou o amor em tempos de cólera,
enquanto eu, que ainda não apaguei 51 velas,
em tempos de prosperidade e bonança,
não consegui amar e ser amado,
por mais de uma década,
somados, os dedos das minhas mãos,
um amor adolescente,
dois casamentos desfeitos,
quase 100 anos de solidão.
*
We will replace lost lovers
Não vou perder tempo a procurar amores perdidos,
perdidos na adolescência, na praia,
na floresta, noutros olhos, noutras bocas, noutros corações,
vou ao funeral, levarei flores, as preferidas, três dias de luto,
vou guardar só as boas memórias, as memórias boas,
vou deixar doer até a dor desaparecer,
morrer à míngua como sem água uma planta num vaso,
vou visitar velhos amantes,
jóias sem par, de pôr e tirar,
brincos, botões de punho, anéis de pedras perdidas,
camas onde tenho sempre lugar,
corpos que me protegem em concha,
bocas que beijam os meus defeitos,
vou olhar com olhos em cio todos os habitantes da cidade,
e no olhar mais brilhante encontrar um novo amante,
a quem vou, uma vez mais, chamar amor
e amar, poro a poro, sem pudor e sem decoro,
como um dia amei os meus amores perdidos.
*
My half-used heart
My half-used heart is full
of people and clouds, a bunch of cats
and wind songs and books and dusty windows,
my singers, writers, painters, my poets, my movies,
a family of penguins, a pirate,
a parrot and a pink flamingo
and shoes and hats and summer dresses,
a Tom Waits’ blues, a lot of avenues,
everyday papers and the sad news,
blackbirds singing and plum pies and laughs
and sorrows and shadows and lost combats
and dead flowers and stars and bats,
a first kiss, a cowboy and a spy,
an empty swimming pool, an empty old house,
and summer nights and winter mornings,
a birdhouse, a lighthouse,
and tears and fears and a one eyed teddy bear,
a bad and a good girl and a playground,
a bridge, a bride, a groom,
uncountable bags of tea,
bottles of wine and packs of cigarettes,
and little monsters in little boxes and all the times
I ask you why,
a bicycle with its postman, a fisherman’s wife,
a pair of spare keys,
a potato field, an orchard,
lots of lovely words from the beloved ones,
some hellos a few goodbyes, your blue-brown eyes
and my broken hopes like broken bones.
*
She’s becoming a lady of a certain age
Recomeça se puderes…
em rigor conselho ou aviso de médico,
e tantas as coisas que, percebo, admito,
não quero, não posso, não sou, ainda sou,
não sou a cor, sou os químicos, a química,
da tinta das canetas com que escrevo,
da tinta com que escondo os brancos cabelos,
sou o carvão do lápis,
sou o fio de cabelo que atravessa a agulha,
sou esta boca que ainda te debulha,
sou três dioptrias,
três dentes chumbados,
três amores amados,
se eu soubesse não tinha casado,
sou um triângulo, sou a geometria,
seno, co-seno e tangente, sou trigonometria,
pudesse eu ser a tua sede, a tua alegria,
sou uma janela sem gelosia,
sou vazia, uma garrafa de plástico,
sou todos os plásticos no mar,
nas entranhas de todos os peixes,
sou com folhas secas a solidão de uma piscina,
se eu te der a mão nada mas não me deixes,
sou o trânsito em hora de ponta,
sou um animal perdido no meio do trânsito,
sou poluição,
sou vento de incêndio,
sou uma inundação, uma decepção,
sou o candeeiro de rua
onde urinam todos os cães da rua,
sou o teu cão no dia em que morreu,
sou o miolo do pão, o caroço da cereja,
na Índia monção, na América furacão
e só de poemas tenho inveja,
sou o barulho do apito do amolador de tesouras,
sou das nuvens uma arcaica lavoura,
sou da lavoura uma vinha velha e vindimada,
sou os pedais da bicicleta do carteiro,
sou o cheiro da relva acabada de cortar,
sou o cheiro a pão acabado de cozer,
sou os pontos das tuas cicatrizes,
sou das meretrizes a tua meretriz
e ainda não comecei a dizer-te o que sou,
sou tudo o que faço,
sou o que desfaço,
sou a faca de aço do rapaz do talho,
sou um velho carvalho, o chão do teu soalho,
sou os teus pés quando descalços
e não me vendo nem te vendo a retalho,
sou o avental ensanguentado onde o rapaz do talho limpa as mãos,
sou Verónica, Madalena, Pavia e Maria,
respeitinho que já tenho idade para ser tua tia
mas com esses sonhos tão grandes nos olhos ainda te fazia.
**
Raquel Serejo Martins (1974) nasceu em Trás-os-Montes. Economista, vegetariana, pratica yôga, autodidacta aprendeu italiano, vive em Lisboa numa casa com três gatos. Tem em papel dois romances: A Solidão dos Inconstantes (2009) e Pretérito Perfeito (2013), e três livros de poesia: Aves de Incêndio (2016), Subúrbios de Veneza (2017), Os Invencíveis (2018), Plantas de Interior (2019).
Fotografia da autora por Vitorino Coragem.
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