Mírian Freitas é mineira, escritora, reside em Juiz de Fora, MG (Brasil). Doutora em Literatura Comparada (UFF), lecionou por anos nos EUA, em Massachusetts. Atualmente é professora do IFSUDESTE/JF. Escreveu Intimidade vasculhada (narrativas- 7Letras), Exílios naufrágios e outras passagens (poemas- Patuá), Caio Fernando Abreu: Uma poética da alteridade e da identidade (Ensaio ilustrado- CRV). Publicou em antologias no Brasil e Portugal (Leiria e Lisboa) e nas revistas CULT, CP Literatura, Palavra Comum, Subversa, Mallarmargens, Acrobata, Ruído Manifesto, Desvario, Arribação, Tamarina, Arara, Diversos Afins e outras.
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VOZ-FÊMEA
Tuas costas negam qualquer espécie de perdão.
Quem haveria pecado mais do que eu,
do que tu mesmo?
Possuímos o crânio da ilusão.
O poema se exilou para além dos muros
das abóbodas do Taj Mahal.
O pássaro tardio leva no bico a semente
de mostarda
o pelicano celebra na sombra
as desvantagens do amor,
o suplício de um dialeto novo,
o desejo da palavra loucura.
*
FLUXO
Entre nuvens, cascalhos, águas, répteis,
te sei. Sobrevivente da sina encurtada
nas linhas da palma
és a versão única de perdão e nobreza
− vento que toca meu rosto
asa de ouro, cabelos de cobre
braço do rio.
Após o tempo dos dias ruins
nenhum segredo a mais posso te contar
depois que tu me disseste que
o amor não morre nunca.
*
UMA OUTRA PARTE
Parte de mim
sonha silenciar penhascos
e as vozes íntimas
no estrondoso grito da partida.
Já consegues me ver como fagulhas no breu do deserto
como chispas de fogo nas monumentais montanhas
do Tibet?
Só uma parte pode ter a dimensão de mim.
Se sonhei ervas, prantos, armaduras, folha
se sonhei túmulos e vitrinas sem os impecáveis
manequins
me julgas opaca?
Se olhares ao redor como quem me vê
em minúcias
saberás do meu voo incerto
sobre as ilhas que eu não sei
sobre pedras, cânticos, cavalgadas,
nada mais há além da contemplação.
O que esperas de mim?
Das funduras do poço que habito
os peixes de sal abrem suas escamas
e testemunham a resiliência e o chumbo
no rosto desta tarde.
*
SEGREDO ENTRE ABAPURU E EU
(A Tarsila do Amaral)
Na festa
nenhum vinho ou champanhe
apenas o lado esquerdo estava coberto
pelo teu corpo
robusto, pés enormes, ombros de carne
feição misógina
perdido
no meio do nada
rosto miúdo no deserto azul
o cactos e a desesperança, sol
acima do tom, ardendo o corpo
anca sem ossos, lugares acesos
nenhum relâmpago, e você me pergunta
se vai chover,
eu digo que sim
na pele crespa, reflexos ocres:
− terra e vento −
tantas nuances…
a léguas e distâncias
te acompanho:
nos livros
nos museus
no azulejo da pia da cozinha
(na sua esquisitice
você é meu herói
sempre)
agora você aqui,
nesta casa, de novo,
no hall da escada
me olha
te venero
te ouço
toco suas frágeis algemas
tudo bem, tudo azul
não são os cisnes com a beleza em plumas
de uma masculinidade imponente
que me atraem
não, não são.
Mas você
com teu corpo desajeitado
pés de monstro
esqueleto gordo deformado
que é o meu abismo
dia após dia
e você me arrastando até o seu deserto.
(Tudo bem/tudo azul: versos de Sylvia Plath, em Poemas, p. 69, Ed. Iluminuras).
*
VISITANDO CAMILLE
Quando estive em Paris
Camille estava lá,
estampada nas curvas do bronze e do mármore
com sua loucura de querer ser alguém.
Vi de perto sua arte em A valsa, A idade madura,
em Sakountala
frutos de seus ossos presos à terra.
Terra de onde tentou fugir a vida toda.
Lá estavam os restos de seu exílio
a morte misturada ao pântano,
ao lapso do animal instintivo
que ataca e morde o predador
depois se mata de remorso.
Nas paredes de Montfavet, o amargo
gosto da paranoia e o cheiro ardido
de um luto antigo.
O buraco cavado no chão
é o túmulo:
− depósito de sua carne urinada,
da arte em pedaços
e de todas as suas mágoas nas águas sem fim
embaixo da terra
− em quantos túmulos caberia seu fracasso? −
Não, não há perdão para o seu assassino.
*
DA MORTE
Quando a morte chegar a esta casa
não ameaces o silêncio com o choro convulso.
Vá até o pomar e colhe frutos
aperta entre os dentes as peras
e os figos
mentaliza todas as flores amarelas
acaricia a lágrima da ausência
deita-te sobre a relva e lembra-te dos pássaros
e do arder do vento
entre as árvores e as águas
que se repetem.
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