ainda sou muito nova para escrever este poema
percebo que a melancolia é um excesso
— de espaço e de tempo
percebo que sou dos cavalos que precisam
não do toque do chicote ou mesmo do sangue a rachar os ossos
mas do próprio desaparecimento
— para iniciar o trote
percebo e procuro seguir o conselho de ferlinghetti
ouvir meu próprio respirar e, de ouvido no chão, o girar da terra
depois, desaparafusar as portas mas não
jogar fora os parafusos
que eu ouça bem isto: não jogar fora os parafusos
não destruir o mundo se não tiver algo melhor para colocar no lugar dele
— é que por enquanto não tenho mesmo nada melhor em mente
estou aqui (onde mesmo?) com um saquinho de parafusos
pendurado ao pescoço (e é pesado)
mais uma vez, mais uma vez
o dedo suspenso a um milímetro do botão da bomba
e não estou conseguindo interpretar os sinais
sou ainda muito nova para escrever este poema
mas já sei que o canto dos pássaros é de desespero
também já percebi que saber não chegar é tão
bonito quanto: chegar
de boniteza estamos bem, lá isso estamos
the boniteza is the new felicidade
a cidade anda medindo meus passos
de lupas nas pontas dos tentáculos
de cima de baixo dos lados e na diagonal
sobretudo na diagonal: a luz mesmo a raspar
mas sem aderir à minha pele
que é real
que é real
ter medo é ainda desconhecer
corrijo: ter medo é ainda precisar conhecer
eu não estou conseguindo interpretar os sinais
corrijo: talvez não existam mesmo papéis dobradinhos atirados do além
é só isto: enquanto uso palavras, as palavras
usam-me
enquanto pergunto à montanha, a montanha
pergunta-me
enquanto continuo aqui, o aqui
continua-me
ah, ouve bem isto:
ver tudo bonito é ter descoberto a beleza das coisas feias
mas hoje eu estou cansada
então, dou o sorriso dos miseráveis e canto como quem desiste secretamente
não nos iludamos, meus vizinhos:
acabaremos sempre um pouco antes do fim
serei sempre muito nova para escrever este poema
*
[dum lugar íntimo do espanto]
no vazio pachorrento que te fura
por ali passa a centelha
e enquanto passa
dilata-o
*
mamihlapinatapai
em russo, há uma palavra específica para o afeto que se tem por alguém que se amou. em tcheco, há uma palavra para um certo tipo de angústia diante da própria mediocridade ou falta de habilidade (lembro de kundera falar disso). na escócia, parece que há uma palavra para o tique do lábio superior que indica a antecipação da alegria. em albanês, há alegres 17 e 27 palavras respectivamente para sobrancelhas e bigodes. em romeno, há sei lá quantas que significam, todas elas, neve, mas cada uma para especificar um certo tipo de neve, que por aqui (ao sol marinheiro da língua portuguesa) não distinguimos por desnecessidade. e se o russo olha para o amor antigo, veja bem: o japonês inventou uma palavra para um sentimento de pré-amor. em yagan, idioma indígena falado por um povo da tierra del fuego, mamihlapinatapai é aquele olhar trocado por duas pessoas quando ambas querem que a outra tome a iniciativa de fazer algo que ambas sabem que querem mas.
mas: o que é a coisa menos a palavra? a palavra menos a língua? isso que se percebe num repente e não tem esqueleto nem contorno para apoiar sua existência — não existindo, pode ainda resistir? se a língua nos funda a humanidade, e se há quem saiba que neve não é simplesmente neve, como amor não é simplesmente amor, assim como a saudade não é só uma falta, e calunga não é só saudade mas também abismo e deus… como posso eu
dizer algo agora daqui de onde estou?
*
poção insustentável
quase que passo por uma poça
uma pequena poça de água
num qualquer meio de rua da cidade
tantos de nós contemplam rios o mar a chuva
quantos contemplaram um dia uma poça
escura suja, e rasa
mesmo assim espelha meu rosto, a poça
sinto generosidade nesse pequeno gesto
e então demoro-me em sua toda pequenez
em seu silêncio esquecido aos pés da cidade
em seu contorno que se sabe improvisado
vejo então que é a poça que me observa
rios mar chuva passam
ex-correm a cada instante que passa — não a poça
a poça demora-se conserva-se
vejo que chega a olhar-me com altivez
uma profundez reversa
vejo que me analisa
águas que fluem não fazem esse tipo de coisa
não estão nem aí
quase desvio o olhar, mas mantenho
quero ver até onde vai a rasa poça
que me atrasa assim
a bicicleta passa e liberta a poça
que fica do meu tamanho
avanço
sacudindo a poça de mim
ou — é a poça que me sacode de si
e o mundo é que recuou
.
seja como for,
estou aqui e
não posso
.
mais adiar
isso
*
desaforismo
horizontalmente,
o frio está sempre a aquecer \ o quente não pára na quentura
o dia cada vez mais dia \ cada vez mais atinge \ a noite
a doença é um processo de cura \ a sanidade, de loucura
a solidão mira na multidão \ e vice-versa
e se há uma certeza, é a da calma que vem depois do desespero
há um (inconcluso) equilibrismo (quântico) que busca o zero — de tudo
e depois o próprio zero é transistor para um outro deslimite qualquer
verticalmente.
e aqui, no nadir do nada
na calada dos cálamos do pó do éter
é quando começamos a definir e tudo começa a deixar de fazer sentido
como quem encontra e nisso não conseguisse mais situar-se em relação a isso
mas diz que deixando o oco fermentar, e fermentar, há quem
se encha de edifícios
e ao contrário do contrário sempre a contrariar
— o que, veja bem, faz pensar que amar e não amar é,
no fundo do fundo sempre a afundar,
a mesma coisa
*
geotectónica
existimos porque alguém
pensa em nós
não o contrário
.
mexer-se por dentro da cabeça
até a combustão
não te dá uma partícula de existência
pelo contrário — tira-te
quanto mais as coisas pensadas
existem
ao pensá-las
cada vez mais adias
a tua existência
inclusive se quiseres desaparecer
do mundo o que podes fazer é
pores-te num canto a pensar
só a pensar
/ solidão virá de solidificar
existências — outras
às vezes o passado é sólido
num presente pastoso
às vezes são os presentes paralelos que
demasiado concretamente
se assemelham aos telhados confusos
que olhamos da janela
num lugar oblíquo — íntimo — da cidade
quando olhar pela janela se torna propriamente
um lugar
e o porvir que às vezes perpendicula
ao posto burocrático
como um cínico regato, assim fugidiço
quantas vezes
não sentiste os pés levemente molhados de
um futuro que nunca existirá?
nunca ninguém pensou nisso nos estados
da imatéria?
também há gente estonteantemente rochosa
que não arreda pé de nos furar o ar respirável de
ofegante existência \
se quiseres desaparecer
do mundo o que podes fazer é
pores-te num canto a pensar
só a pensar, dizia eu
enquanto isso vais ver como vais
mirrando
e (sisifiana mente)
en volvendo a ti mesmo
chega uma hora em que vais evaporar
num interstelar sopro mudo
mudo ainda por cima:
ninguém vai re parar
é a chamada
— desistência
ao contrário, quanto mais
pensarem em ti mais
real serás mais
acesa tua constelação de partículas
— de existência
.
mas e quando duas pessoas estão
cada uma em seu canto
apenas pensando
uma na outra?
aí acontece o fenómeno buraco negro
(onde o tempo pára e o espaço rara)
nem existes
nem desapareces
insistes
**
calí boreaz nasceu em Portugal, onde estudou Direito, em Lisboa, em meio às noites de fado e flamenco. Viveu em Bucareste, na Romênia, onde estudou língua e literatura romena e tradução literária. No virar de 2009 para 2010, atravessa o Atlântico rumo ao sul para viver no Rio de Janeiro, onde se entrega ao estudo e ao ofício do teatro. Na literatura, traduziu do romeno os romances O regresso do hooligan [ed. ASA, Portugal], de Norman Manea, e Lisboa para sempre [ed. Thesaurus, Brasil], de Mihai Zamfir. Seu livro de estreia, outono azul a sul [ed. Urutau, Portugal & Brasil, 2018], é um relato poético do exílio e da clandestinidade, e tem posfácio de João Almino e desenhos de Edgar Duvivier e António Martins-Ferreira. calí integra a coleção Identidade vol. II da Amazon Kindle [2019] com o conto islandeses. Em 2020, surge, pela Caos & Letras, seu segundo livro de poesia, tesserato, uma reunião de tentativas sobre o deslocamento na imobilidade. Seus textos têm aparecido também em várias revistas literárias brasileiras, portuguesas, galegas e mexicanas, bem como em exposições de Portugal e da Índia. [casas virtuais: caliboreaz.com | instagram.com/caliboreaz]
You might also like
More from Calí Boreaz
8 poemas de Calí Boreaz
estou imóvel suspeito que me tornei um quadro com debrum de areia pequenas conchas e pontas de cigarro à minha beira está o mar …