REGISTRO
Nesse tempo de absoluta dissolução
sou contaminado e salvo pela poesia,
antídoto contra
o veneno dos dias
Já não me importam
a falta de paciência do motorista
os corações duros dos auditores da Receita
a avidez usurária dos bancos
a tempestade de ofensas
o parlamento acanalhado
o roubo nas estatais
a queda do PIB
a crise do euro
os disparos de Kim Jong-un
os disparates de Trump
a poligamia de Jacob Zuma
a saliva farisaica dos evangélicos
a transgênica autoproclamação de Guaidó
os lacaios torquemadas da Lava-jato
e outros coveiros da latinoamericanidade
Meus versos não estarão em repouso
como a indolência que caminha
passo a passo
no ritmo de todas as coisas
Vou de mãos dadas
com o verbo
e com sua pá,
lavratura
adestrando
o terreno infértil
*
PALIMPSESTOS
Sob a pele das palavras
mil mundos me contemplam
com um desafio de esfinge:
palácios
cemitérios
a náusea das guerras
as nódoas do tempo
os compulsórios desertos
a teia da aranha
a teoria da relatividade
a muda órbita dos planetas
o homem sem qualidades
a quadratura do círculo
os contornos do abismo
O vocábulo
se espraia
sobre cada gesto
desejo
centelha
ameaça
e cada espinho que não vejo
e piso
socorre-me do
anonimato
ajuda-me a dissecar
o que ainda não
vivi
Nesse tempo
de angústias em pleno cio
de temores soletrando tragédias
de ventos semeando esbulhos
em seu roteiro por
esquizofrênicas pastagens,
o verbo me devolve ao éden
*
BRONZE
Na gramática do tempo
consuma-se a linguagem perfeita
das estátuas.
Everado Norões
Na praça com seu nome
passo em frente
ao busto inerte de Getúlio Vargas
e saúdo as aves veteranas
que há décadas depositam em sua cabeça
o engenho das fezes
batizando o metal sem vida.
Olho ao redor
e a vida invertebrada
de vai e vens indiferentes
não se atém
à inutilidade de todas as homenagens
Mergulho na tarde
que, melancólica e sem pressa,
invade e rumina a cidade
em sua imutável e desértica
condição
com seu tempo siderúrgico
endurecendo os pulmões
Atônito entre os labirintos
de provincianos disfarces,
retido na indecisão
de desconhecidos atalhos,
perco o fio dessa meada urbana,
carrego o pesadelo dos dias
e me enfurno na paisagem
*
CENA
Oblíquo,
um homem atravessa
a rua ao meio-dia
e seu corpo
é um baú de cansaços
onde labirintam mistérios
Enviesado,
não se importa
com metafísicas nem chocolates
e nenhuma tabacaria por perto
secreta o espanto
que o habita
Silêncio
ou vômito
apascentam
essa solidão ambulante
*
INVENTÁRIO DE RUÍNAS
Vê o mundo, o mundo tem uma lâmina.
Gonçalo M. Tavares
Queria ser como Manoel de Barros,
um adestrador de inutilidades:
ver poesia em tudo aquilo
que não há sentido para nós
como o flutuar do beija-flor
e as bicicletas fulminantes de Leônidas
da Silva ou um helicóptero pairando
sobre o nosso espanto
Enquanto isso, o mundo vinga-se
dos poetas
com sua lâmina mordaz
com notícias de um tempo extraviado
e seu fulminante comércio de inverdades
Com sua caligrafia nas águas
o artista é um domador de relâmpagos
tentando sobreviver
à inexatidão de viver
nessa sintaxe do caos sob a fuligem
de tudo que é
torpeza
esmorecimento
vertigem e anonimato
No terror hemorrágico desses mares
de barbárie e incivilidade,
embriões de novas guerras e tiranias
vêm a jato na crina insone
de ventos a inventar invectivas
nos meus pensamentos
Dissolvida na escuridão,
a esperança digladia
em vão
contra o escárnio
de habitar cada um de nós
em chão estrangeiro
Fere-nos esse país dos enganos
imerso numa eterna noite tropical,
como cadáveres do dia
somos jogados no convés
de um barco ébrio
Os homens não guardam nenhum vestígio
do que foram,
insetos hipnotizados pela luz mortiça
de um passado que se repete
sem nenhum pudor
com sua fúria industrial
imune ao pranto coletivo
diante do naufrágio do sol
nesses dias de desencantos
virtualidades
e uma total e mecânica indiferença.
*
ESTAÇÃO ADVERSA
Pois não. O passado é um país estrangeiro,
mas é esse para sempre o nosso país.
Luís Filipe Castro Mendes
A viagem ao passado
nunca regressa:
na combustão da memória
sinto um cão
chafurdando o íntimo,
adulando um cardume de açoites.
Animal lambendo a ferida,
escória num continente esquivo
onde adubam-se canteiros de melancolia.
As cidades nomeiam
seus mortos
e as efígies de bronze
como tobogãs de insetos,
com seu repertório de excrementos
deixa-os mais vivos
do que nós:
resistem em meio à ausência de bússola
e à fecundação do precário
nesses tempos de ilusões no cio
e colheita de fósseis do nada.
Martelo feroz da existência
é essa música do tempo
tutelando meus dissabores
notas culminantes feito lâminas:
é o fado
ou o fardo da vizinha com besouro na garganta
sibilando salmos em desvario,
acidente
na rota de minhas insônias
quando viajo em galáxias de sangue.
Há um mundo dentro das palavras
(máquina soturna)
que tento desbravar:
esse promontório
que é sedução
ou abismo.
*
NO PÉRE LACHAISE
Enquanto visito o túmulo
de Sadegh Hedayat,
escritor persa que se suicidou em 1951,
abrindo o gás no nº 37 da Rue Championet,
meus olhos passeiam inquietos;
os sentidos, fugidia embarcação,
procuram no oceano de jazigos
e sua vegetação de ausências
um último sentido para a vida
e afundo-me no inominado
nessa coleção de oráculos do Nada
aqui, onde a morte nunca envelhece.
.
Vizinho de Proust,
o autor de “Coruja cega”
divide na tarde parisiense,
despovoada e sombria,
um silêncio tão pesado
quanto o maciço de Damavand.
Vou em busca de um tempo perdido
em meio dessa colônia inerte
onde cresce a linguagem das sombras
e penso em Atma, o cão de Schopenhauer,
e no quanto foi mais feliz
que o resto da Humanidade.
**
Ronaldo Cagiano, nascido em Cataguases (MG), formou-se em Direito, viveu em Brasília e em São Paulo e está radicado em Portugal. Entre outras obras, publicou:: Dezembro indigesto (contos – Prêmio Brasília de Produção Literária 2001), Dicionário de pequenas solidões (contos, Ed. Língua Geral, Rio, 2006), Eles não moram mais aqui (Contos, Ed. Patuá, SP, 2015 – Prêmio Jabuti 2016/Ed. Gato Bravo, Lisboa, 2018); Observatório do caos (poesia, Ed. Patuá, SP, 2016), O mundo sem explicação (Poesia, Ed. Coisas de Ler, Lisboa, 2019) e Cartografia do abismo (Ed. Laranja Original, SP, 2020).
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