AO MALEDICENTE
quantas cobras se enrolam e desenrolam
entre os teus dentes?
quantas vigas se preservam na tua estrutura?
quando inicias a construção
partes do telhado
não vês no solo a humidade que avança?
enterra-te entre os futuros escombros
dos espaços dos teus dentes
quando os caibros deixam passar
as mentiras saltam
como migalhas
nem os pássaros as querem
*
TODOS VÃO DE FÉRIAS
todos vão de férias
mas ficam as crianças
mas ficam os loucos
mas ficam os velhos
mas ficam os animais
abandonados
e os espectáculos abertos a todos os públicos
que querem estar de férias
há um suor a perfume e a praia e a gelado
há um acre sabor no ar a perdidos pelos lados pela frente
por trás de todas as ruas
de todos os prédios altos
Agosto Agosto que mal tens em volta do teu pescoço
que quase te mutilam em desespero e te deixam logo a seguir
[em Setembro
*
AI A MORTE
ai a morte
que se liberta desse corpo
nem em pedra se profeta ou se acomete
ai a vida
que se encontra em tudo e todo
o limite que é ordem e secreto
ai o corpo que se desenrola neste poema
que é arma de um sossego
sem proferir
quase a inútil certeza
*
AO CAIR DA NÉVOA
ao cair da névoa
as vozes arrastam-se na água
dentro de barcas parecendo mortas
e do chapinar miúdo
as línguas parecem remos cansados
a entrar na água
linhas que se formam lateralmente
são esquálidas descompassadas
memórias de um horizonte dolente
das profundezas lamacentas
*
PEÇO ENTÃO À ÁGUA
peço então à água
que ampare esse ser
para que descanse das batidas
violentas
que chegam em turbilhão
peço que se desnude ali antes
bem a meio palmo
e se quebre em duas
para que o sofrimento acabe
*
CARRASCOS EMPENHADOS EM LIMPAR
carrascos empenhados em limpar
os mapas que de espaço é só para eles
as sombras seriam limite nas aureolas adjacentes
não fora que a luz jamais permite
que a indiferença se arrume entre elas
a sombra limite e a luz ainda surgindo
depois é tarde
já tarde quando a manhã já está completa
e o cansaço aberto e desconjuntado entre os botões secos
de todas as rosas que ficaram em sede e desprezadas
mas o limite o limite
de quem quiser estar entre carrascos
é ser como eles ou atirar-se longe de um penhasco
seremos pássaros
*
SOBRE A ÁGUA DENTRO DELA ANDA UMA PONTE
À minha mãe que me ensinou a amar
sobre a água
dentro dela
anda uma ponte
sobre a água
dentro dela
anda uma ponte
de noite deita-se
levando-a inteira ao fundo espaço
verde
de oiro
um musgo
prende-se nos seus pés
e marca
todo o caminho de volta
*
Seleção de poemas por Tiago Alves Costa.
**
Inez Andrade Paes nasceu em Pemba, Moçambique. Para além da escrita (Poesia e Prosa) desenvolve actividade nas áreas de Pintura, Ilustração e Fotografia. Coordena, até hoje, o Prémio Literário Glória de Sant’Anna instituído em 2012. Da sua escrita: O Mar que Toca em Ti (Crónica de viagem – 2002); Paredes Abertas ao Céu (Poesia 2011); “Cantoriana Marítima” – Libreto para ópera em três actos: I – Mar Falante; II – Transparente Luva de Água; III – Flores de Acanto em Marfileno Lençol; Da Estrada Vermelha (Poesia 2015); Da Eterna Vontade (Poesia 2015) Labirinto; À Margem de Todos os Rostos (Poesia 2017) Coisas de Ler – Colecção Clepsydra; Sobre a Água Dentro Dela Anda uma Ponte (Poesia 2018) – Glaciar.
Estes 7 poemas fazem parte do livro “Sobre a Água Dentro Dela Anda uma Ponte” (Poesia 2018) – Glaciar.
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