RAÍZES
Tens a altura das raízes
que prendem a terra ao seu eixo.
LEONARD COHEN MORREU
Leonard Cohen morreu.
Pelo menos tenho o doce de tomate da minha mãe.
SÁBADO
Estamos hoje aqui reunidos
em nome da poesia.
Demasiados cálices para tão pouca santidade.
A salvação, uma pele que o corpo se esquece de mudar,
e a alma que vai ficando mais e mais encardida,
mais e mais esquecida
à espera que algo se lhe junte
para justificar a lavagem,
mesmo em modo ecológico —
mas talvez fosse já isso a felicidade.
Somos os que falam demasiado
e demasiado depressa na esperança
de desafiarmos a Física
e finalmente provarmos que a luz é mais rápida
do que o silêncio, mas falhamos.
Ela andou no colégio de freiras e usa sempre batom vermelho.
Ele tem uma janela para outro lugar, mas preferia não ser pai.
Ela tem um braço onde apoiar-se, mas tropeça constantemente.
A mãe faz anos amanhã, mas nada adoça a morte do pai
e ainda assim o filho insiste para que eu sorria sempre.
Ela tem o tipo de cabelo com que se lavam os pés no Livro,
mas deixou de acreditar.
Somos os que dançam demasiado
e demasiado depressa,
os que riem muito e riem demasiado alto,
os que escrevem e escrevem demasiado
sobre o que os desassossega
porque, se pararmos, a vida pode estar
à espera.
ASSISTOLIA
Depois do choque,
a assistolia.
Depois do amor,
mais amor ainda.
Que desilusão a vida:
haver coisas que se recusam
a morrer
muito após a tua partida.
CONFISSÃO
Cristo está em minha casa,
mas recusa-se a sair do quarto.
Todos os dias lhe deixo
um prato cheio de arrependimento
e me esqueço de bater à porta.
CHOVE SOBRE COISAS
Chove sobre coisas
que não servem para nada:
a luz verde do semáforo
combina com o letreiro
da farmácia fechada.
A luminosidade inútil
de uma hora
uma temperatura
um sinal positivo
e alguém que escorrega e cai
e fica por momentos na estrada
a sangrar transparências.
Eis um homem em desuso
porque o amor está fora de serviço
e ele não fala a língua nem se apercebe
de que existem farmácias permanentes.
Se soubesse, rasgaria a lista.
A nada deveríamos permitir
mais do que o amor algum dia será.
O MEU CORPO
Este é o meu corpo,
mas ainda não é o meu corpo.
Este já não é o meu corpo
e nunca voltará a ser o meu corpo.
Mas este já foi o meu corpo
e ainda virá a ser o meu corpo.
Este já parece o meu corpo,
mas eu não sei se o meu corpo
ainda se lembra do meu corpo
ou se terá de esculpir outro.
TANTO SANGUE
Tanto sangue derramado,
mas ainda tarda
a remissão do pecado.
Selecção de poemas por Tiago Alves Costa.
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Gisela Casimiro, é uma escritora, artista e ativista portuguesa. A sua obra é sobre as pessoas, a memória, o quotidiano e a Natureza. Está a construir o seu próprio museu, onde se coloca no lugar de outrem através da fotografia, pois defende que qualquer pessoa poderia ser, precisamente, outrem, na arte e em qualquer parte. Tem formação em Línguas, Literaturas e Culturas — Estudos Portugueses e Ingleses (FCSH/UNL). É formadora e revisora. Com textos publicados em Portugal e na Turquia, em 2017 foi poeta convidada no International Young Writers Meeting e apresentou a sua obra em Istambul, Konya e Gaziantep. Pratica voluntariado social e cultural. Nasceu a 30 de outubro de 1984 na Guiné-Bissau e vive em Portugal desde o
final dos anos 80. blog: giselacasimiro.tumblr.com