UM PAR DE LÁBIOS ME
resguarda em desafio
são dois ou quatro
lábios?
não são os meus, diz-me a
consciência
que apesar de tudo fura
as imagens que aparecem
ando distraída, a perder a
lucidez
da membrana que vibra foto
sensível
onde está o toque?
no scroll gorduroso do meu
polegar?
no descarte endométrico com que
meço a negligência do meu próprio
ego
precioso?
na embaixada que fundei,
a dos amores emigrantes
investidos das maiores qualificações
em diáspora sem espessura?
na minha mão direita
quando
triste toca a esquerda?
no lençol amarfanhado, preso
no fundo da cama
(por isso desço eu, reduzo)
ou no desviar dos olhos do
falso amigo bem pago?
o mundo anda
bidimensional e a minha
pele e as camadas
dentro
ressentem-se
*
TIRA-ME ESTE ECRÃ DA FRENTE E
traz-me um
lápis e um papel para
traçar um risco e depois
parar
pairar
como as avós nos seus sofás
um dia inteiro
em loop
a primeira letra do nome de um amor
vindo à baila
a pé coxinho e já
não se lembra
só que fazia calor
ou então muito frio, depende
da geografia de que queres saber
aqui só está mesmo o naperon
pousado ele também
pois sentada é justamente uma boa posição
para não enlouquecer
olhos em frente, passos em redor
o doutor do outro lado do ringue
ou um filme de maxilar anquilosante
uma estaca aqui plantada sou
esgrima, sono,
lago ou fogo de artifício
tudo pode ser
no fim do dia
mãos vazias
a não ser pelas cascas de batata
salvadoras no seu descascar
os pulsos rodam, a lâmina desliza
o produto do motor é rapidamente concretizado
manuseável, precioso por um segundo
pronto para a varinha mágica que o
desfará
já está, agora limpar e
fechar a gaveta
fumar um cigarro que nunca acontece
porque ontem deu na televisão uma
emissão sobre o fetiche
a atribuição do desejo a um objecto
como se fosse um recurso estilístico
dos dias e das mãos
não é batata mas ocupa
e teatraliza o espelho
o mesmo do cabelo que cresce
cresce
e sai da moldura
ocupa a sala envolvendo os habitantes
que não estão
antes:
quantas áfricas, navios
plantações de geada
chícharos, café
exóticos congos e jindungos
o terço na mão e o costume de
papelote português debaixo
da saia e nas patas dos
frangos muito chiques
quantos cinemas arejados do
modernismo tropical
e suspensórios bem penteados,
uma madeixa loira por conhecer
quantos retornos, primeiros de maios
páginas forrando o chão de paris
e cabines telefónicas semanais
quantos quilómetros e termómetros
terra revolta, luz
para que eu chegasse a esta cadeira
que é feminina
que é casual
que é o anti-tempo
que é a mãe sentadamente completa
e o congeminar de um nomadismo
paradoxal erguendo-se na bacia
que a genética me legou, com
mais ou menos ginga, inusitada,
dançante porém raíz
pois sentada é talvez uma boa posição
para enlouquecer
zoom in, zoom out
laboriosos píxeis
ou a supressão das horas que
se virmos bem é tudo o que sabemos ter
ou não sabemos
fingimos, como eu que tendo
a espacializar o tempo e a culpa
situando-me entre um pretexto e um
muro de pedra cheio de musgo
por isso não me encosto
faço figas a que a sorte
me conceda meio de
fazer jus
à fabulosa fusão biológica e
consuetudinária que aqui se deu
parece ficção isto de viver
enceno pois o necessário para
ordenar: papéis de esquisso
contas por pagar
o pai a avisar
e memórias, essas empilham-se
no lava-louças e outras vezes
não, eclipsam-se
e planos, esses pairam até me
apanharem numa esquina
e me agarrarem com
ganas de atenção
atenção às horas
não te atrases
ou pelo menos abre os olhos,
bebe um copo
é a ordem possível, digo
saltando entre as colinas de
tralha em espera
ou sentada
escavando túneis de sentido
ligando os pontos
*
PUDOR
palavra que vejo o observador apontar
sobrolho tentando compor a constelação da pessoa
à sua frente
podemos não falar de mim?
e no entanto não me calo, tudo é egoísta
também o silêncio
insone que me faz querer sair,
procurar, politizar o caminho até a um par de olhos e muitas
mãos
gosto de percorrer o caminho até alguém, julgo que
disse ainda
isso é interessante
acenei, consenti, passando à frente
duvidando já
culpa ou amor?
crença na sempre possível transformação
mas que bem ou que mal faz a perspectiva?
o cubismo é humano
*
SOU PERFORMÁTICA
não vedes, ó
conterrâneos?
atiro o cabelo
ecoo o riso
neurotiso as palavras
com jogos de encolher e esticar
a profundíssima
levíssima
infinitesimal
*
COMOVO-ME SEMPRE
escreves
dançando as vozes com aquilo a que os
ingleses chamam
stream of consciousness
admiro sobretudo como arredondas os teus
textos
não cortam
nem deixam um
baloiço vazio como
os meus
os meus lês às vezes
com os teus olhos de papel
translúcido
que é como quem diz que não é lúcido
é para lá
para onde não me queres levar
tudo porque a luz não incidiu sobre o meu
rosto naquele momento inicial
puseste os óculos
não voltarias a fitar nem de
esguelha
as possibilidades da fraca estrutura óssea das
minhas maçãs
já te disse que não sou fotogénica mas que
sou muito
boa
em movimento?
em movimento quero dizer em
filme e
em caminhando
causaste, por exemplo
o desvio do que escrevo
para o fio suspenso que sai do meu peito e
te procura
deixando as necessárias páginas de resolver
problemas e infligir disciplina
por revolver
um rasto que não reparas que deixaste porque
és tão distraído
a mochila fica sempre num sítio qualquer e
assim fica tudo o que
não tem especial valor poético
mas vê bem
que pena seria
se isto fosse um lapso
da tua parte
fraca:
a luz, o pasmo, o foco nos
instantes fundadores que julgas
eternizar
sem perceberes que a vida não começa
mas se desdobra
*
MASTIGA A CONTRADIÇÃO
ama o seu engolir
concreto
é deliciosa porque
abre
paulatinamente
o campo do palato
e depois, pás
afunila-o num
par de estalos acídico
para chocalhar o cinismo
que é usado com frequência
entre refeições
mas a que tão bons corações
se apegam como se fosse pão
*
DEIXA-TE DE TERMOS TÉCNICOS
ouço no
meio do fumo e do granito
que fome vou matar hoje,
vou pedir uma tosta com o vinho da
casa
sim, sim
nós não comemos porque o cinto está
a apertar
um lábio tinto, isso hoje não temos
mas é o país que mais consome,
sabias
oupas, ficam os copos vazios
sem a marca do seu
beber
como se chama o zoom quando estamos a falar
do som
veio ao caso a propósito de um crepitar de
muito perto da ponta incandescente
de um cigarro
chega o rei e a rainha, sentam-se
à mesa que é comprida e de madeira
tosca a fazer de cave
parabéns pelo que fizeram
é assim assim e assado
banal e artesanal
existencial e polímata
e na conversa ao lado falam
da ingrata desorganização de
uma colega de trabalho
a minha tosta derrete enquanto me
chega da direita uma história de amor
na índia e na itália
daquelas que se adiam e enfim
se dão
ooooh ressurge em uníssono
num automatismo sentido
e de cabeça chegando ao
ombro
o nosso coro
depois tenho que falar contigo
frase em bola cruzada que
agarro largando
os utensílios que
me sustinham o convívio
está bem, fala
escusas de fazer um drama
para me pedir um número e
um desconto
não desafies, amigo
fica-te mal a cunha a
querer meter-se
por entre os cotovelos desta mesa
acaba tudo na esticadíssima despedida
dos dias todos e
rodopia enfim o vinho
é segredo, mas registo o som dos degraus
de minha casa
que envio a um desconhecido
pois é
íntima soleira,
estranho mundo
*
TOCOU-ME AO DE LEVE UMAS VEZES
duas ou três
o suficiente para perceber
o efeito amazónico da minha sentença
o cabelo de lado com palavras
a direito
tomo o tempo para ser
e sinto a barriga a esticar-se
em regalo
homemfico-me? mulhertorno-me?
finjo. que distância vai daqui
até aos destinos reais
de um vôo que ainda hei-de apanhar
a música estava africanada
transportadora
funkier then a mosquito’s tweeter
quando se tornou maquinal
fui à casa de banho registar pensamentos mas
desprovida
pus só o batom
você confunde o que pode ser
com impressões
diz-me uma voz na fila
de espera do bengaleiro
o gato pardo sumiu e
ainda bem
não fiquei com boa impressão e
diz que ando a dar-lhes valor
o que contradiz a minha
crença teórica
na inteligência amorosa do tempo longo
sobre isso
ainda tenho que pensar
*
PAISAGEM
Vou escrever então sobre a paisagem
para combater esse pudor de ser
uma, una
só porque as células ou assim
se juntam de alguma forma em escultura de mim,
vivente, mulher e tal
quero que seja útil, a paisagem
(ao contrário do belíssimo diagnóstico da canção)
é-me prévia, absolutamente
laranjas apodrecem sozinhas querendo lembrar-nos
de as comer
olha as vitaminas, andam aí resfriados
na selvagem pintura
com lápis de cor desenhamos o espaço
(projectos tentam existir)
pousamo-los ao lado para nos
deitarmos às vezes na erva ou nos
passeios
(lânguida e lúdica palavra para as
pedras)
e na pele ser frio
e ser o fugidio mundo
não porque vá ele partir
se é que me faço entender
levanto-me ao modo dos que dançam
e os meus joelhos cheios de
nódoas negras dizem
adieu au langage
bom dia a tudo
quanto embate
existe
mas já viste, se deixa dar forma
parece que a gravidade e a
aceleração serão
a mesma coisa
um mineral que pede um sulco
para o registo
e um som que regista
para inaugurar a sua própria
dissipação
e contudo na hesitação
entre deambular e a autofagia
jardins cultivam-se
porosas miniaturas
entre o fora e o
dentro
**
Inês Morão Dias nasceu em Coimbra, Portugal, em 1988. É arquitecta. Viveu em Coimbra, Paris e Genebra. Hoje mora no Porto. ‘Par de Olhos’ (Fresca, Poetria, 2019) foi o seu primeiro livro de poemas.