A MORTE E O LUTO ENTRAM NUM BAR
A morte e o luto entram num bar
Saturados de um trabalho inglório.
Querem abrir a pista de dança
Para exorcizar a energia das pessoas que levaram
Embora para eles o destino final delas seja irrisório.
Enquanto a morte é rápida,
O luto gosta de se sentar à mesa,
Passar a mão como quem dá uma festa ao de leve
A quem cá fica e de repente não sabe o que fazer.
Já a morte nunca se quer comprometer.
Essa diferença em natureza aproximou-os,
A maneira distinta de ser de cada um encantou-os.
É o magnetismo da lei da atração a fazer das suas
Entretêm-se a sobrevoar cidades à luz das luas.
Foram até a um miradouro de Lisboa
Abriram uma garrafa de vinho do Dão.
Debateram questões existenciais,
Não foram para a cama cedo, fizeram serão.
*
EXERCÍCIO
Exercita os teus demónios
Manda-os fazer o sagrado jogging matinal.
Avisa-os de que são os jokers do baralho,
Faz pouco deles
Mesmo que quebrar o gelo dê trabalho.
Que eles se ponham em bicos de pés,
Se multipliquem e sejas tu versus dez
Numa luta constante e desigual.
E por favor, diz-lhes para não romantizarem
O amor à primeira vista.
Já temos no mundo filmes suficientes
A explorarem essa temática irrealista.
Desejo que os demónios façam gazeta
Dentro da tua bonita cabeça.
Vão antes para a rua protestar de cartaz no ar
Perguntar porque é que o Estado nunca está do lado do artista.
*
TREINA O CORPO, FAZ O LIMBO
Recém-chegado a um país
Onde a nação anda há demasiados anos
Em plena guerra com um inimigo capitalista,
Alguém quer saber até onde iria o comunista
Para passar da fase da entrevista. E ficar com o lugar
Numa empresa que acabaria por monopolizar
O seu tempo, a sua atenção, o seu alento, a sua motivação.
Sentado na cadeira, está o jovem a idealizar um bar
Na América do Obama, the land of the free.
O rapaz ouve a sua intuição quando esta lhe diz
“Treina o corpo, vai dançar, aprende a fazer o limbo”.
Vais precisar quando, agora em definitivo,
Te sentares e fores regido
Pela lei de quem se sujeita a entrar no papel de aprendiz.
*
HABITAÇÃO PRECÁRIA
Crescer é também perceber
Que o útero de uma mãe
É o melhor T0 que alguma vez se pode habitar.
Quem me dera ficar para sempre nas entranhas maternas,
Dormir todas as sestas sem ter de me preocupar
Com rendas, água, luz ou gás
Com a falta que o teu abraço me faz.
Olho-me ao espelho e vejo os teus olhos e pestanas
Todas as minhas boas e más heranças.
Depois de um funeral com enchentes e flores tão bonitas
Onde é que verdadeiramente descansas,
Que feitiços lanças?
Quando conspiras com o universo
Espero que seja sempre a meu favor.
É o mínimo que podes fazer
Depois de tanta dor
Para abdicar de uma habitação tão precária.
*
AU CLAIR DE LA LUNE
Debussy elogiou a luz que emana de ti
Como um amante que passa contigo todas as noites
E te conhece todas as fases, te dedica todas as frases,
Numa ode ao amor poético.
Mas eu sempre te admirei lá de longe
Fixa, a iluminar o que tão bem se esconde
Na escuridão.
E quando penso no que fazes por mim
Sei que o meu apreço sobressairia
Mais facilmente pelo caráter funcional
De quem não deseja chamar a atenção
Com demonstrações de afeto
Consideradas fora do banal.
Entre nós temos a distância inevitável
À qual se adiciona aquela que queremos dar.
Um dia construo uma ponte
Para ir e voltar.
*
A FLECHA
Por azar, sem contar,
A pessoa do coração grande
Apaixonou-se pelo refratário.
E agora o quarto que ela tinha reservado para ele
No T4 de porta vermelho sangue está outra vez para arrendar,
No mercado. De casa aberta porque a vida está difícil e ela não espera
Por razões inúmeras. Incluindo ter nascido prematura, impaciente, ingénua e crente
De que se se puser à porta de vestido justo, a mostrar o pernil,
Alguém há de piscar o olho ou assobiar, gesticular,
E com sorte (sempre com sorte) levá-la a jantar.
Depois quanto ao efeito do percurso da flecha
Tanto faz, ninguém está a ver, é outra história.
Se chega aos zigue zagues, intacta ou toda partida,
Se atingiu o alvo em virtude do inevitável cair de dominós em fila,
Se foi de rompante, com pompa e circunstância, que anunciou que afinal vinha.
Desde que seja a do Cúpido e não a de Aquiles,
Cujas proezas vivem e morrem à luz das chamas
Não da paixão, mas da Guerra de Troia.
*
LEVAR UMA TAMPA
Eu, Isabella Rossellini
Tu, David Lynch.
Eu, a aprender a levar uma tampa
Tu, o intelectual frio e calculista.
Eu, a atriz amargurada, a menina do papá que tanto idealizava
Tu, o realizador e o artista que não amava.
Eu, com o coração nas mãos, profundamente enganada
Tu, a dizeres-me para parar de ir atrás das coisas inúteis
Eu, a dar-me tempo e espaço para apanhar as coisas úteis.
Tu, a dançares e a conheceres outras pessoas na discoteca
Eu, a fazer o limbo, a passar debaixo do fio como se fosse da meta.
A pensar no ato heroico, a ambicionar a medalha.
A ler no fundo que o tamanho da expectativa é proporcional ao da falha.
Tu, a levares as tuas pick-up lines, a tua tralha e as pores-me na calha.
Eu, a limpar com brio o reverso da medalha.
*
OFERENDA DIVINA
Deixa-nos ser só um esboço.
Tu, velha lenda dos mares antigos
Eu, um conto esquecido e por ler;
Agora sinto só vergonha.
Afinal nunca fizemos por merecer
O amor que os Deuses em concílio
Nos resolveram oferecer.
*
PRENÚNCIO
Quando olhámos um para o outro
Numa união orquestrada pelo acaso
Vi-me num vestido branco simples e modesto,
Vi noites de paixão e o inevitável caixão,
Vi isto tudo e o resto.
Vi o mundo, tu a dares-me a mão
Como prenúncio de uma transformação.
Quando te vejo quero dizer tudo ao mesmo tempo
Mas não consigo verbalizar quando sinto desejo.
Só os meus anjos da guarda sabem o quanto te quero
Riem-se de mim quando estamos juntos
Eles sabem que o gato me comeu a língua.
E que nós somos como um nó que não ata nem desata.
E que eu só quero um beijo.
O contorno da sardinha que tens no braço
Tenho eu em forma de porta-chaves;
Levo o peixe comigo todos os dias
Desde que o comprei na subida para o castelo,
Quando fiquei na casa da rua com o nome da tua mãe.
Há seis anos o teu nome ainda não me dizia nada.
Vi a tua mãe;
Queria-lhe dar os parabéns
Por te ter feito tão bem.
Agora sei que também ela
Foi uma musa para alguém.
*
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Natural de Viseu, Joana Futre muda-se para Lisboa para perseguir a sua paixão por Línguas, Literaturas e Culturas, acabando por tirar um Major em Estudos Ingleses. Ao abrigo do Programa Erasmus +, passa 9 meses na Universidade de Cambridge (Reino Unido) e ao regressar à capital, inscreve-se no mestrado de Jornalismo, mas nunca põe de parte a entrada no universo da escrita criativa. Atualmente trabalha como copywriter e content manager, aliando a investigação típica do jornalismo à criatividade necessária para ser feliz em indústrias criativas.