Não sei o que sentem os mortos na travessia:
se se lembram de quem os amou
se se convencem de que é possível o regresso
se se reconhecem no espelho do rio.
Sei que ao barqueiro dei uma moeda
e fi-lo prometer-me que te levaria.
Mas ainda te vejo desta margem
pois a candeia que trago continua a arder.
*
Esperava dor ao tirar a minha pele
mas nunca a perda total do meu nome.
Julgava ter aprendido com as serpentes
e saber do mistério da mudança:
a pele caída é casulo de um corpo a crescer.
*
As Senhoras
No dia em que morri
e me vi perdido no caminho
reclamaram-me as senhoras
das serpentes e feitiços.
Medusas Medeias Morganas
Marias Madonas e Mães chorando
um corpo profanado pelos homens.
Mas às senhoras deu a Terra
o poder da ressurreição.
Deram-me leite de beber
sibilaram-me o destino
e afastaram os inimigos
para jamais voltarem até mim.
E eu pude resgatar por fim
a minha alma imortal.
*
O filho da serpente
Não há trono para herdar
nem cidade.
Apenas os ossos e a árvore
de onde a minha Mãe colheu
as maçãs douradas
para eu morder.
*
Recupero as camisas que guardei
as de seda e as de linho
e lembro de quando as quis queimar.
A minha nudez é uma dádiva
que quiseram destruir.
Poro a poro
pêlo a pêlo
fio a fio
refaço a veste do meu corpo.
*
Sereia
(à Galiza)
Ensinou-me a sereia palavras novas
malhante bruar ronsel
e nelas encontrei o meu reflexo.
Pedi-lhe os segredos da magia
para da água fazer fala e futuro
mas só me deu o canto e a saudade.
Disse-me que colhesse as conchas da praia.
E que com o búzio mais pequeno
construísse a minha casa.
*
Druida
(à Concha Rousia)
Depois de ver no meu reflexo
a antiga altivez das árvores
transformei-me num pássaro
para eternamente seguir cantando
a memória da nobreza das florestas.
*
A fala das bruxas
(à Eugénia Frazão)
«Existe a magia e pode ser de todos»
Xohana Torres
Saber das raízes
foi saber do Lar.
Saber das sementes
foi saber da ascensão.
Saber das nascentes
foi saber do desejo.
Mas quando soube da palavra e dos poemas
aprendi a fala das bruxas.
E nunca mais vivi num mundo sem magia.
*
Manancial
(à Iolanda Aldrei)
Quando, às quintas-feiras,
como as tâmaras de Mushkil Gusha,
sei que a Terra se refaz na memória
de quem ainda nutre os laços
conta as histórias
e fala a verdade dos mitos.
**
Samuel F. Pimenta é poeta e escritor. Nasceu a 26 de Fevereiro de 1990, em Alcanhões, Santarém. Começou a escrever com 10 anos e licenciou-se em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa.Tem participado em diversas conferências e em encontros literários nacionais e internacionais, e colabora com publicações em Portugal, no Brasil, em Angola, em Moçambique e na Galiza. Em 2016 representou Portugal no International Young Poets Meeting, em Istambul, Turquia. A sua obra está presente em diversas antologias, em Portugal e no estrangeiro. Alguns dos seus livros deram origem a peças de teatro e teses académicas. Integrou recentemente a Academia Galega da Língua Portuguesa como Membro Correspondente e, neste momento, escreve para o jornal Público. São vários os prémios que lhe têm sido atribuídos, como o Prémio Jovens Criadores 2012 (Portugal), a Comenda Luís Vaz de Camões 2014 (Brasil) e o Prémio Liberdade de Expressão 2014 (Brasil). Em 2015, foi um dos vencedores das Bolsas Jovens Criadores, do Centro Nacional de Cultura, para a realização de uma residência artística e a escrita do romance Iluminações de Uma Mulher Livre. Em 2016, com o livro Ágora, ganhou o IV Prémio Literário Glória de Sant’Anna, galardão anual destinado ao melhor livro de poesia dos países e regiões de língua portuguesa. Em 2019, com Ascensão da Água, ganhou o Prémio Literário Cidade de Almada. Além da literatura, dedica-se ao estudo da espiritualidade e à promoção dos direitos LGBTI+, dos direitos humanos e dos direitos da Terra.
9 poemas do livro “Ascensão da Água” (Editora Labirinto, 2020).
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