1.ª SENTINELA (DESCANTO)
Onde a linha da miséria
e a estreiteza de um relato
acentuam o doirado da lua
permanceces estanque frente à besta
Manilhas de ásperas surdinas
as xácaras em náusea deglutidas
e pássaros roxos tranquilizando as feras
Um freio fecha os homens
abrindo-lhes a terra em ruína austera
enquanto a aranha dos céus tece na agonia
a palma em recepção no templo
Aí dormem, estantes de nereida, rastilho
do tornado, Alexandria eólica.
**
NÃO REGRESSO
O chão dissipa-se
nas memórias magras,
uma ave cai.
Coração básculo das azinhagas
Papelões em molhe.
Não transijo: homens em borboletas
Penduro o veludo, eunuco da Pandora virgem
Esconjuro a besta apocalíptica das missões
Prefiro o rastro empacotado das urtigas
à mansidão telemática da inércia
A bazófia do candelabro, jactância em surdina
répteis defendendo a sua pedra
Vou de aviada, nenhum sacro!
**
1.
Por ti, a mão e a palma
no plátano
ao desceres a cópula do sol
a boca
quente textura, texto
do sitiado mel
**
5.
Os dois irmãos aproximam-se
em simultâneo da cruz
arrancaram-a do calvário!
**
9.
De rabo sentado, olhando a terra batida
do chão da cozinha, o velho bebia
Levantou a pata traseira
sinalizou o dia em jacto contra a macieira
no quente da manhã, a mina de água
resplandecia azul
Ficaram, sólidos, sobre uma pedra,
ingenuamente
cai um pêssego
e o cão geme.
**
16.
(Aos náufragos)
Há um poema intemporal
que só o corpo sabe
há uma luz facial ou semente
aberta
– a ostra habita a casa.
**
24.
Neva,
um arrepio casa
o menino num cantinho
como tudo arde
A criada com biscoitos
numa salva de prata
o xixi da gata
exala na sala
os primos bebem
leite da tigela
o avô aquece os pés
na manta
a avó tapa
com óleo de linhaça
a ferida que fermenta
**
28.
(Ao Corsinho Fortes, Cabo Verde)
Em aduelas vespas e adoçantes resistes
aos anéis das noivas que te visitam
meu santo e adorado poeta
dou-te a boa, nada mais tenho
ao despedir-me!
**
33.
Viajante de luas
e de mares
teus olhos
despem-se
Lesbos
não canta
resplandeça o sol
no resgate da fome
em oaristo!
**
**
“Este livro começa com o título. Ao contrário do que parece não é tão frequente assim. Neste, o chocante instrumento da Morte que se apresenta de chofre é indício do que virá depois. Afinal, tudo aquilo que vela momentaneamente a sua lâmina e a resguarda de ser vista a céu aberto, montando uma rede de ilusões”.
Fragmento do prefácio de António Cabrita.
Aurelino Costa nasceu em Argivai, Póvoa de Varzim / 1956. Poeta e diseur, licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Obras: Poesia Solar, ed. Orpheu. Lisboa, 92; Na Raiz do Tempo, ed. Tema. Dep. Literário da Soc. Guilherme Cossoul, Lisboa, 2000, Pitões das Júnias, ed. Fluviais/Lisboa & Galeria Arcana, Pontevedra, 2002; Amónio, ed. Do Buraco. Dep. Literário da Soc. Guilherme Cossoul. Lisboa, 2003, 2ª edição (bilingue, castelhano-português) tradução de Sílvia Zaias, ed. Amalaia, Léon, 2006; Na Terra de Genoveva, ed. do Buraco. Dep. Lit. da Soc. Guilherme Cossoul. Lisboa, 05.
O seu livro Gadanha (Modo de Ler, 2018) é finalista do prémio poesia SPA.
Seleção de poemas por Tiago Alves Costa.