Recentemente foi publicada em Palavra Comum uma entrevista à jovem poeta moçambicana Hirondina Joshua, realizada por Ramiro Torres. Nela incluíam-se alguns dos poemas do seu primeiro livro: Os ângulos da casa. Gostei da entrevista e dos poemas de modo que decidi experimentar uma gravação declamada dos mesmos. A poesia de Hirondina pode parecer uma poesia mais para ser lida do que declamada. Obriga a um incerto mergulho interior, uma incerta meditação evocativa, cheia de ressonâncias que destituem a possibilidade de uma interpretação linear, mesmo da atribuição de um sentido específico. Há hermetismo, as palavras e os nomes possuem uma força condensada na sua vibração significante, e fazem irromper uma instância mítica e atemporal. E isto consegue-se por um uso divergente da enunciação, um deslocamento metafórico que quebra radicalmente o bom senso, o sentido comum. De este jeito as imagens arquetípicas instauram nos poemas uma atmosfera que apela á irrupção do inconsciente, com as suas características próprias de anulação do sentido convencional dos significados, tal e como a tradição surrealista chegou a indagar na sua prática poética e artística com tanta intensidade. Declamar os poemas significa levá-los ao plano da conscientização, da irrupção da oralidade no plano comum que se dirige ao outro na fragilidade própria e imediata, em certo modo a-histórica (agora já não porque fica gravada!) do acontecimento. Mas ao mesmo tempo encarnada na voz que sai da sua interioridade para comunicar-se no nível que corresponda a cada receptor. Trata-se de levar, como numa convocação ou num encantamento, á vibração da palavra poética. Inevitavelmente há aqui uma “interpretação”, como quando um ator dá uma particular forma ao seu papel, mas só superficialmente, pois a força objetiva da sua sonoridade significante está além de qualquer subjetividade, aceitando, no entanto, que sujeito e objeto são categorias convencionais. E gosto da metáfora do teatro porque há na poesia de Hirondina este espaço teatral povoado de diversas vozes que nos falam desde distintos personagens interiores. Consta-me que Hirondina não gosta de ler os seus próprios poemas. É algo que nos acontece a todos os que escrevemos, dominados por uma cultura excessivamente literária, mas acho que devemos tentar vencer este obstáculo, deixando transitar uma colaboração integradora entre o silêncio da escrita solitária, íntima, e a abertura para o mundo. Através da “pessoa” e do “personagem” físico e vivo que, como num canto, exprime e convoca as forças telúricas e cósmicas, humanas e inumanas para reconciliá-las, exorcizá-las ou simplesmente interpelá-las. Por isso quiçá seja um bom exercício dizer a poesia em voz alta, sós ou acompanhados. Há uma implicação analógica: a palavra oral como corpo expressivo que traduz a alma da significação e que se embebe do espírito da mímica. A poesia é assim uma manifestação quase xamanística para a restauração do mundo, para dizer-lhe ao universo: lá vai esta mensagem engarrafada dirigida a estrelas e gatos, pedras e santos, perversos e inocentes, lírios ou rosas até aos confins do universo.
Dar-lhes voz é uma experiência que nos permite abrir um diálogo que se faz coral, compartilhado, e que nos coloca num âmbito vestibular entre consciência e inconsciente, como no jogo da respiração que habita os ângulos da casa, da nossa casa interior, em construção e mudança permanente. Respiremos as palavras de Hirondina Joshua e tentemos recordar a casa primordial, a nossa verdadeira pátria.
*
Poemas de Hirondina recitados por José António Lozano com música de Philip Glass (The Poet Acts):
*
Estes poemas de Os ângulos da casa foram publicados na Revista Caliban:
O corredor.
Haverá dentro dele uma grande corrida?
Ou cores ou corrimões ou coringas ou cordeiros ou cordas ou
concordâncias?
A mão apressa-se para chegar entretanto não há destinos.
A mão é solitária por natureza. E na sua solidão exerce o mundo. O
mundo exerce nela a matéria da incompletude. Não é do escuro
que a mão tem medo. A mão teme a cegueira da parede. A visão
atómica da coisa branca.
A mão em eterna construção cai no tempo. O tempo em eterna
construção cai na mão.
*
Se for para entrarmos entremos com o corpo todo e depressa.
Leais à Terra e ao fragmento da Humanidade. Entremos sem
recuos no instante terrestre.
Ai dor suprema.
Ai cor invisível. Indivisível.
Se for para entrarmos entremos com a unha toda e a tola
magnitude de sermos estrangeiros. Espelhos, de dentro iniciamos:
— dividimos o escuro e separamos as águas.
Se for para entrarmos entremos com o corpo todo e depressa e
usando a porta da frente.
*
Ao Francisco e ao Antero
O amor levanta em direcção ao sol. Entretanto, dele só sei a mão
calorosa. O grande toque desordenado. O delírio.
A febre.
A droga dos dedos e da lua.
O sol levanta para mim como se levantasse o mundo inteiro.
Aí então transpiro na loucura. Abato-me.
Morro e vivo inúmeras vezes. Afinal, este processo de vidas e
mortes é que é a Vida — talvez o remédio seja arder.
– E continuo. Louca e impávida.
Continuo na grande estrada.
20.12.16
NOCTURNO
Comboio em caudas clandestinas. Subo até ao horizonte, sento-me
ao lado da razão.
A noite já bêbada, todo o resto que me restou. Sou eu mesma, o
demónio do devaneio.
A substância intáctil da matéria. Já de nada sei. De mim fugi.
ALQUIMIA DO FOGO
Repara no que há dentro do fogo antes dele arder.
Não olhes as cores lentas do vermelho, laranja, amarelo nem as
azuladas que se deixam fazer no brilho da luz.
Vê esta substância intáctil nos poros da retina. A nudez que se
veste nesta condição.
Repara dentro, bem a fundo a mestria com que se tece um coração
alado.
ALEGORIAS
Repara como se traduz uma lágrima.
Diga-me se tem cor ou sexo a sua língua;
a minúscula palavra que a habita.
Aves são apenas asas na hora do voo.
VOCAÇÃO
Boca.
Válvula
motora
onde o dragão
geme sem paixão.
Cauda.
Inóspito espaço
onde
afundo
o ser embriagado.
Externo capim
suco que borbulha
o intenso fogo.
*
Minha voz entra no fundo
e fode o espaco
este selvagem animal
o fogo aberto do orgasmo
esperma maduro
a descer para o útero
vocação carnal
clítoris duro
no compasso rubro
onde estremece o corpo
de volúpia. O leite, o suco, a vida.
*
Espero a tradição milenar de um pénis sedento. Para vingar a febre
mundana. Há metafísica invisível no cimo do ministério. Morre-se
de várias formas: ou se ignorando os dias, ou lendo-se o interior
dos séculos. Cumpre-se a lei do movimento. E ninguém pode
ultrapassar a sina do inabalável. A carne.
EXODUS
*
N\ao escrevo para ser vista, escrevo para não ser vista. O
desassossego me embrulha.
Mas, não será a escrita a pior nudez?
Estou nua todos os dias que a grafia me busca.
A Lua entre os dedos, a maçã numa alusão indescritível.
Há muito pudor na escrita.
Há muito poder na escrita.
A pele fresca canta e se impõe a uma tal leveza superior inigualável.
A abundância da supremacia.
No osso que sai a carne para junto da pupila engrandecer o século.
A veia apagada, essencial faz o seu trabalho ginástico no peso do
músculo.
Estou nua sempre que o verso me chega.
Sou nua sempre o verbo me cega.
A luz. O despropósito avança ao domínio de qualquer coisa vestida
e arrebatadora.
A nudez é nua. Para os que têm olhos. A nudez é vaidosa para os
que querem ver mais do que podem ver.
E a escrita? Deambula de quarto em quarto na casa do agente, a
palavra vaga estreita e delgada no caminho da descoberta.
Há pudor e há poder.
— E agora acredito: “quem fabrica um peixe, fabrica duas ondas…”
*
O livro nasceu na veia. Foi então que partiu para dentro de outros
mundos.
Eram negros os dedos do homem. A cabeça parecia um asfalto de
guerra.
— Um analfabeto completo: bom para quem nasce. Tinha o
elemento essencial para viver:
a madura obscuridade vista no plano superficial.
Foi então que nasceu a selvagem Letra, nas mãos e nos dentes
ferozes.
A escrita. A voz superlativa. O canto cru. Tudo lhe nascera
rapidamente como a febre do universo.
— E ele não via.
A cada dia ao invés de compreender, descompreendia o
movimento sagrado do verbo.
Porque ele era seu próprio estrangeiro no estado urgente e
repentino, e os seus desejos eram vítimas do caminho errante.
Podia-se dele imaginar tudo: menos a arte do líquido rubro.
E depois já não se podia jurar, tornamo-nos nessa linha criminal;
porque bastava ver-se. Ou ser-se cego.
You might also like
More from Críticas
Sobre “Estado Demente Comrazão”, de Paulo Fernandes Mirás | Alfredo J. Ferreiro Salgueiro
Estado Demente Comrazão é um livro complicado. É por isso que não está na moda. Parabéns ao seu autor!
O tempo das “Não-Coisas”. E o uso excessivo das redes sociais segundo Byung-Chul Han
"O que há nas coisas: esse é o verdadeiro mistério" Jacques Lacan Agarramos o smartphone, verificamos as notificações do Instagram, do Facebook, …