Apresentação para a III Feira do Livro de Maputo (Maputo | 6, 7, 8 de Outubro de 2016). Cremildo Bahule [8-Outubro-2016]
A relação entre música e poesia vem desde a antiguidade. Na cultura da Grécia Antiga, por exemplo, poesia e música eram praticamente inseparáveis: a poesia era feita para ser cantada. De acordo com a tradição, a música e a poesia nasceram juntas. De fato, a palavra “lírica”, de onde vem a expressão “poema lírico”, significava, originalmente, certo tipo de composição literária feita para ser cantada, fazendo-se acompanhar por instrumento de cordas, de preferência a lira.
Durante muito tempo a Ilha do Ibo – uma pequena ilha coralina localizada próximo da costa da Província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique – foi conhecida como destinada aos trovadores. Ele era sinónimo da “casa dos poetas”, segundo os anais históricos. A pergunta, óbvia, seria: o que a poesia de Lemos tem de conexão com a música? Simples: Lemos nasceu da na Ilha do Ibo, onde para além de carregar a veia de trovador possui o lado lúdico da poesia. Contudo, para não ser simplista na resposta sou obrigado a discorrer mais a minha constatação.
O início da produção poética de Lemos foi influenciado pela estética parnasiano-simbolista, que usava da linguagem de estilo elevado e musical como das metáforas “dos descobridores” – ou encontro de culturas, para ser mais sensato – para se expressar. No livro A Dimensão do Desejo, já percebemos, em Lemos, um processo de libertação de sua herança parnasiano-simbolista; sua linguagem começa a se desvincular do estilo elevado da poética tradicional incorporando, alguns elementos da cultura popular. E para isso, o poeta utiliza as palavras do dia-a-dia, o verso livre e valoriza o que é comumente considerado desqualificado como matéria poética.
Voz que penetra os labirintos
Da noite
E leva o rosto da manhã (pág. 34).
Lemos é um poeta que se identifica com a música, ele próprio nos diz: “liberta os sons. A palavra é música. / Seis pequenos cantos são seis notas / viajando entre um imaginário e outro – / e tu viúva inquieta na Primavera” (pág. 99). Não sei se o poeta chegou a estudar música, teoria musical e tocar instrumentos como o piano e o violão. Esta aproximação com a música pode ser vista também como um meio de aproximação da tradição popular do seu berço. Lembremos, que a música, para o Lemos, é um objecto usado para construção de seus poemas, para isso o poeta fez uso de técnicas musicais na estrutura dos poemas, buscando efeitos semelhantes aos da música. Unindo, assim, as duas artes irmãs.
Um quarteto é amor do piano, cordas,
Finnegans Wake no recuo dos mitos,
Instrumentos e vocais libertos (pág. 99).
São vários os exemplos da musicalidade encontrados na poesia de Lemos: “mas em pânico a voz / denunciava / a palidez da alma” (pág. 44), “palmas e ventos / bocas de salvação” (pág. 60), “No riso musical que teces / na ternura da inquieta, / a alegria se desdobra / e em seus fundos esconde” (pág. 95).
No poema “E do Silêncio Nasce a Música”, que tenta transpor para a poesia a linha melódica de Lemos, os fluxos sonoros não se interrompem: entre palavra e palavra, não há ponto morto, espaço a ser alinhavado. Aqui chamo a atenção para um pormenor: o autor também chama a atenção para o facto de, além de ser amante da música, desenvolver uma poesia a que se atribui uma musicalidade intrínseca, o que, de certa forma, explica o facto de sua poesia ser passível de ser musicada. Só uma sugestão: seria interessante que algum músico moçambicano como Hortêncio Langa, Roberto Chitsondzo ou José Mucavel musicasse os poemas de Lemos.
A música, para Lemos, teve uma importância imprescindível para a realização de alguns dos seus mais belos poemas. A prova disso é a sua vasta obra poética que revela esse facto escondido aos olhos de qualquer mortal. Para Lemos, a arte do poeta e a arte do músico são semelhantes mesmo que cada uma delas tenha sua linguagem própria, no sentido de que a música não se precisa de utilizar termos linguísticos para se realizar, mas somente de elementos sonoros, diferenciando exemplarmente da poesia que utiliza necessariamente dos termos linguísticos combinados aos termos fonéticos, termos essenciais para a realização do poema. Pois Lemos, mesmo sem uma partitura de música, relaciona-a com a poesia, tanto no plano interno, com suas correspondências estruturais; quanto no plano externo, com suas possíveis conexões entre poesia e uma possível melodia.
Nesse sentido, o poeta lança mão de outro procedimento – esse mais subjectivo – para utilizar a música como elemento para a criação poética. Aqui revela-se o poder da captação do sentimento passado pela música no sentido estrito. Nesse procedimento, o poeta não se utiliza de elementos formais da música para construir seu poema, mas sim da experiência íntima e pessoal passada pela música para esse construir seu poema, superando e ultrapassando os “abismos” existentes entre as duas artes. Assim, para finalizar, podemos assumir que: “É do silêncio que nasce a música, / é da avidez do sangue que ela vive, / é a festa final o que ela oferece” (pág. 99).
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