«A poesia também atenta para camadas fónicas do verso, para a estrutura visual da mancha gráfica, tem aspetos formais que podem ser super diversos, e os poetas estão sempre tentando subvertê-los».
Fernanda Drummond
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Café com Português, por Carla Nepomuceno
Fernanda Drummond acaba de publicar o livro Muralha (Urutau, 2023). Em entrevista ao Café com Português, Fernanda fala-nos sobre o seu processo criativo e revela-nos o momento-chave em que decidiu tornar-se escritora.
Para aqueles que não a conhecem, fale-nos um pouco de ti.
Olha, sou uma poeta migrante, vim do Rio de Janeiro para Lisboa, depois de ter vivido aqui outras vezes, e em seis outras cidades diferentes. Acho que essa é uma coisa que aparece na minha poesia e também no que eu sou. Tive uma formação académica longa e demorada, centrada na literatura portuguesa. Agora estou aqui para ver tudo em direto.
Conte-nos algo sobre o seu início. Como é que decidiu começar a escrever?
Não sei se para ninguém que escreve há esse momento de uma decisão tão racional marcada no tempo. Mas uma das coisas de que me lembro é que quando tinha uns 11 anos tinha aquelas agendas com uma página para cada dia, que iam servindo para diário e repositório de papéis de bombons e bilhetes de cinema. Quanto mais paramentados, na escola ou no bairro nos achavam mais vividos, haha. Nessas agendas, apontei uma vez alguns versos mais ou menos até encher uma página, e me lembro de pensar nesse momento que tinha conseguido fazer algo que se parecia mais ou menos com as canções pop de que eu era fã. Para chegar a alguma coisa que merecesse estar em livro, acho que passei por muita tentativa e erro, e com certeza muito do que vai parar em poemas vem da marginália de poemas e livros. As pessoas a quem empresto livros veem que tudo meu é muito anotado. Não que tudo se aproveite.
Foi também um livro surgido de muita tentativa e erro, mas cheguei ao título numa viagem. Na casa em que estava, todas as janelas davam para as muralhas da vila. Depois juntei isso com o facto de que nessa época morava nas costas do castelo de São Jorge, em Lisboa. Achei que ia terminar isso quando terminasse meu contrato nessa casa, mas acabei por levar mais 7 anos até acabar. Não tenho muita certeza que está acabado, mas é o que tem pra hoje. O livro é um walking tour pelos lugares em que sempre passava, ou pelos lugares onde eu não estava, e esse facto da ausência me causava muita dor. Ele vive nessa experiência migratória, um pouco como as aves que têm tempo certo para estar aqui ou ali. Mas prefiro que quem leia dê a sua própria interpretação e veja com os próprios olhos, porque minha perceção do livro é muito limitada, muito colada ao que vivi biograficamente.
Fale-nos do seu processo criativo e do que a literatura significa para ti.
Não tenho processo criativo nenhum, não me sento pra escrever, não tenho método, sou completamente desorganizada. Eu escrevo muito à mão em cadernos ou hoje em dia com o auxílio da aplicação de notas do telefone, quando estou em trânsito. Mas só Deus sabe o que está enterrado nessa aplicação, em dez anos que faço isso. De vez em quando vou lá pescar alguma coisa começada, mas o normal é que eu escreva tudo de uma vez. Meus poemas não são tão longos assim, de modo geral. O que me acontece muito é ter um poema e começar a cortá-lo, editá-lo, mas não pôr nenhum acréscimo. Foi assim que quase acabei com o livro, porque se eu decidisse cortar mais, ele desaparecia. Eu gosto bastante mais da concisão do que do analítico.
Já a segunda pergunta nos levaria para uma tese, que ninguém teria pachorra de ler… Quando falei lá em cima que tive uma formação longuíssima, isso partiu de uma paixão imensa pela literatura, num sentido de que eu frequentemente acho que não sei fazer mais nada na vida, só ler livros, lidar com livros, tentar escrevê-los, falar deles. Tem uma coisa da minha ídola Fran Leibowitz, naquele documentário que o Scorcese fez, em que ela fala: “Eu fui acumulando livros e livros, e não ligo pra dinheiro, mas é o que compra esses objetos que a gente gosta. Eu queria ficar deitada nesse apartamento de 20 mil livros, no meu sofá, lendo. E que ninguém mais me torrasse a paciência pra nada. Mas isso não é um emprego de verdade, então eu tive que ser motorista de táxi, uma época”. Enfim. Tudo que eu queria era ficar deitada lendo os meus livros, mas ninguém deixa.
Mas para responder mesmo ao que eu acho que a pergunta levanta: a literatura é tudo, e eu sou um samba de uma nota só, quase que só gosto disso na vida – e sobretudo eu concordo com aqueles que tendem a pensar que ela é uma lente, um modo de entender o real, a gente trocando a lente, troca o ponto de vista, entende mais um pouquinho de outra forma. E eu sem ter a literatura nem sei o que nós estamos fazendo aqui, fico sem ter como entender o mundo.
Onde podemos encontrar o teu livro?
O livro é comprável on-line, pela loja do Instagram da Urutau, ou pelo site da Urutau, ou em algumas lojas físicas: Snob, Almedina, Ler Devagar, na novíssima e incrível livraria feminista Greta… a maioria em Lisboa. Quem estiver no Brasil também pode comprar on-line e em algumas livrarias.
Na sua opinião, o que é que distingue a poesia de outras formas literárias?
Bom, pra começar a imensa maioria de poemas é composta em versos. Há os poemas em prosa, mas é em resumo uma arte do verso. A poesia também atenta para camadas fónicas do verso, para a estrutura visual da mancha gráfica, tem aspetos formais que podem ser super diversos, e os poetas estão sempre tentando subvertê-los. Por exemplo, tem uma instalação de uma pessoa artista plástica, Rod, que fez uma enorme faixa rosa que dizia: “Não foi descobrimento foi matança” (sem vírgula mesmo). Por acaso a faixa é na vertical, podia fazer lembrar a verticalidade do verso em poemas. Mas não é por isso que acho que essa instalação também pode ser lida como poesia. É porque ela desloca qualquer coisa, e nesse caso o faz com uma brutalidade necessária. Acho que a boa poesia nos tira do lugar, necessariamente. Comunica rápido algo, ainda que possamos ler o verso ou o poema devagar. Tem algo ali que fala diretamente com você, como uma flecha, num invólucro pensado formalmente. Mas obviamente tem milhões de jeitos de responder a essa questão. E ela é sempre inconclusiva.
Há alguma escritora que te tenha inspirado? Existe algum livro que tenha uma influência decisiva sobre ti quando se trata de dizer “também quero fazer isto”?
Quando se trata de autoras mulheres, eu tenho de dizer que o meu cânone é decididamente feminino ou queer. Sempre estudei autoras mulheres, Sophia de Mello Breyner Andresen, Clarice Lispector, Fiama Hasse Pais Brandão, mais recentemente tenho lido a Alexandra Lucas Coelho, a Tatiana Faia… todas pessoas que me inspiram diariamente, porque eu já acordo com “a luz ou realidade exerce o seu fascínio” (verso de Fiama) na cabeça e escovo os dentes pensando “viver não é vivível” (fragmento de Clarice). Isso é uma coisa mesmo de todos os dias, não necessariamente esses versos, mas essas pessoas me habitam, de facto. Mas duas mulheres foram decisivas para eu realmente me tornar autora: Fiama Hasse Pais Brandão e Anne Carson. Elas são muito diferentes entre si, mas é isso. O livro que eu talvez possa dizer que me fez chegar ao pensamento do “também quero” é o Autobiografia do Vermelho, que saiu em Portugal pela não (edições), mas que eu li aos 20 anos sem entender praticamente nenhuma da graça que ele tem. Algo no gesto de se cruzar o muito antigo, a mitologia, com o muito banal e contemporâneo e quotidiano, como narrar em versos uma ligação entre mãe e filho antes duma viagem de avião, ou descrever o jeito com que uma porta mosquiteira bate na varanda, essas coisas me comovem demais…
Com que personagem literária se sentaria para tomar uma xícara de café e porquê?
Sempre que falo do Autobiografia acabo me transportando pro universo dele, então a primeira coisa que me veio à mente foi sentar com o Gérion, o protagonista (que é um mostro vermelho adolescente com asas) e perguntar por que raios ele se apaixonou tanto pelo Héracles se ele era tão mais velho, tão indisponível e, principalmente, se uma das tarefas dele era matá-lo.
Um livro, uma canção e uma viagem da sua infância.
Eu nunca peço nada das pessoas, a não ser que leiam Grande Sertão: Veredas, a melhor razão pra se ter nascido brasileiro. Mas a dica cabe a qualquer nacionalidade.
Esses dias estou viciada em Fotografia, do Tom Jobim. Tem uma hora que a letra fala “escureceu”, e o acorde fica todo troncho, dissonante, esquisito. Depois fala que “aquela luz lá embaixo se acendeu” e o acorde volta a ficar certinho. É incrível.
Nunca nenhuma viagem vai se equiparar às minhas estadias de 3 meses (“somos crianças feitas para as grandes férias”, diria Ruy Belo) em Arraial do Cabo, simplesmente o lugar mais paradisíaco do mundo. Não só pelas praias, mas talvez pelo tempo esticado da infância.
Um lugar para se perder.
A Mouraria. Acho que os árabes fizeram assim pra isso mesmo.
Além de escrever, tem outros projetos futuros que gostaria de realizar?
Queria continuar trabalhando pela divulgação da literatura que eu considero que vale a pena. Se é ensinando, editando, traduzindo… vamos ver.
Uma mensagem para quem está a ler a entrevista.
Fiquei muito contente e surpresa de ter sido chamada pra estar aqui. Espero que motive boas leituras!
Do Café com Português e da Palavra Comum – revista galega de artes e letras, desejamos-lhe sucesso profissional e pessoal.
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ISBN: 978-65-5900-470-6
Idioma: português
Encadernação: rústica
Formato: 13×16,5 cm
Páginas: 52
Ano de edição: 2023
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