Luciene Carvalho (cf. revista Almanakuyaba)
Café com Português
Luciene Carvalho, a primeira mulher negra no Brasil a assumir a presidência de uma Academia de Letras: “É como se os meus poros fossem absorvendo o mundo e talvez houvesse uma decantação em um momento e a poesia se derramasse em versos e em formas de poemas.”
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Luciene Carvalho, é um prazer contar com a sua participação na Revista Palavra Comum. Quando você começou a escrever?
Eu não comecei escrevendo, comecei muito menina, muito criança mesmo, a partir dos dois anos e meio, declamando. A poesia me chegou inicialmente pela oralidade poética e não pela escrita, a escrita chegou mais ou menos aos nove anos. Segundo a minha mãe, logo após a morte do meu pai. Mas a poesia me era ensinada, ensaiada pela minha irmã Cida, e com bastante fomento e entusiasmo da minha mãe. Então tinha todo um acolhimento, um ninho artístico nessa relação. E elas me ensinava a decorar o poema, eu declamava em escola, visitas, enfim, oralidade poética, primeiro e bem mais tarde, segundo a minha mãe, depois da morte do meu pai, eu começo a escrever, ensaiar.
Como você escreve? Anota ideias, frases, nomes, cria um plano? Segue algum ritual para escrever?
Eu espero. Todas as noites são noites de esperar a poesia. E em alguns momentos a poesia decide instalar um território, um estar diferente em mim. Eu sinto, eu percebo. E as poesias? Elas, elas jorram em múltiplos de três, três, seis, nove, 12, 15. Já chegaram a 15 de uma só vez. As poesias me chegam prontas, como se tivesse um olho d’água poético dentro de mim. Isso não é uma coisa que eu acesse porque eu quero, é um estado. Eu observo que existe uma atenção poética, uma atenção poética permanente em mim. É como se os meus poros fossem absorvendo o mundo e talvez houvesse uma decantação em um momento e a poesia se derramasse em versos e em formas de poemas. Acontece, não é poesia de disciplina, de todo dia. E nesse acontecer, nesse estado diferente, eu sinto um canal, uma conexão. E o jorro poético acontece muito rápido, frenético, intenso e toma conta de mim. É extremamente prazeroso e libertador.
Qual é o significado da escrita na sua vida?
Poesia para mim é um lugar social, resgate pessoal e é cidadania. É autossustento, é trabalho porque depois você tem que fazer livros, amadurecer, levar o pão poético na oralidade, enfim… E a poesia é uma viagem que me habita e me transporta.
Você acabou de lançar o livro “Saranzal” (cf. Carlini & Caniato Editorial). Pode falar-nos um pouco sobre o livro?
Teve um pré lançamento, um programa ligado à pós graduação da USP em São Paulo, no dia 4 de novembro, e vai ser lançado em Cuiabá, berço de concepções da minha obra, no dia 19 de novembro de 2024. Saranzal é uma metáfora, onde eu comparo uma característica de vegetação ribeirinha, um emaranhado de caules e raízes que pode ser visto no fluxo e refluxo com os territórios emocionais das pessoas. É um livro de afeto, afetos por pessoas, afetos por lugares. E há também uma transcendência.
Durante 50 anos, eu vivi o silêncio do luto sobre a morte de meu pai. Este ano faz 50 anos da morte do meu pai, e no livro Saranzal eu falo dele, falo sobre o amor recebido dele, do amor pleno, vivido. Do amor vivido com ele, recíproco e permanente, e o quanto esse amor me fortaleceu até hoje. Mas quando falo de mim, falo também desse momento de empoderamento feminino, em que, além de termos todos os direitos, talvez possamos aspirar também a ter direito a todos os afetos.
Na sua opinião, quais são os principais obstáculos que uma escritora encontra ao querer publicar uma obra?
Com relação a publicação de obras eu acho que há coisas importantes a dizer, falta de projeção, falta de recursos, etc. Mas o meu foco nesse momento é dialogar com meninas negras que têm medo da linguagem, que não se sentem autorizadas a expressar a poesia que mora dentro delas. Não associo poesia e escrita a uma coisa só, à universidade ou à formação. Eu acredito que nem toda poesia vai ser publicada, porque a poesia é imensa, então é exercício, é autoexpressão, é terapêutica. E também pode ser literatura. Mais importante do que falar sobre publicação, neste momento eu estou interessada no acesso das meninas negras, superando as barreiras linguísticas para ter acesso à poesia que mora dentro delas. Pode ser que elas venham a ser publicadas, essa é uma escolha.
Eu acredito que quando a poesia escolhe a pessoa, existe um poder que move a obra. Então, não importa a dimensão, o aprofundamento, a consciência idiomática. É a relação que a obra tem com o leitor, portanto o leitor e o escritor transitam no território da literatura, porque não importa escrever um livro apenas para mim, para a minha autorrealização. Quando eu publico, eu estou dando ao público, e eu preciso também pensar no público que vai receber e na função transformadora que o livro cumprirá. Então, no lugar que eu existo, eu compreendo a pergunta, mas eu acho que a questão entre o poema, a poesia, a literatura, a complexidade é maior do que técnica ou a oportunidade. Existem universos a serem tratados aí.
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Em mim I
Sempre quis,
na adolescência e mocidade,
ser meiga.
Achava lindo
aquelas meninas,
aquelas mocinhas
de voz doce,
de talhe delgado.
E eu crescendo…
Voz rouca,
mais de um metro e setenta
– e gorda.
Meu Deus, gorda!
Cabelo grenho,
nariz largo,
mãos ásperas.
Anos de autoaversão.
Quase perdi o tempo
de perceber além da forma;
de alcançar o ser, a essência.
Preciso corrigir
meu olho cego.
Preciso refazer
meu alter ego.
Preciso aceitar quem sou, enfim.
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Você incorpora elementos das suas experiências na sua escrita?
A minha poesia entra pelo poro do corpo, da mente, da alma e talvez, em algum nível coletivo e de representação, se desenha através de minha mão. É a subjetividade própria da escrita e da poesia implica em ausência de objetividade. A literatura é um lugar de subjetividades. Então, de toda forma, princípios, olhares e coisas que eu acredito impregnam minha obra.
Quais são os seus principais objetivos enquanto escritora?
Fazer minha poesia e viver dela, viver dela e para ela. Viver na minha terra, no Mato Grosso, em Cuiabá. Viver de poesia.
Estar em condições de dignidade profissional, vivendo de escrita e de literatura no meu tempo, na minha terra, no Mato Grosso, com dignidade cidadã, podendo usufruir das condições, podendo ter alimentação, moradia, vestimenta, tudo. E eu sonho com a profissionalização do fazer do escritor no Mato Grosso. E que a literatura mato-grossense e floresça, seja plural e acessível para quem quer ler e para quem quer escrever, mas também que seja compreendida enquanto arte, enquanto necessidade social de elevação de almas e possibilidade profissional para mais mulheres como eu.
SARANZAL foi inspirado por alguma circunstância ou momento da sua vida?
Sarazal não é necessariamente uma inspiração, Saranzal é um estandarte, é uma postura, é um movimento, é uma grande metáfora do meu momento. É um livro que foi buscar poemas que estavam escritos há 20 anos. Muitos deles eu vive durante a pandemia e depois da pandemia, é a minha primeira publicação pós-pandemia. Então, olha este mundo. É o primeiro livro de poemas que eu escrevo após ter vivido um infarto. E é um livro também do olhar de uma mulher que está às vésperas de completar 60 anos. É um livro raro, único, mas que também traz uma poesia que me dá muita alegria de ter sido escrita por mim.
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Saranzal
Conteúdo e meio
pra pouco tempo.
Seu corpo
é fonte
de intimidade;
vai brotando sonhos…
E o tempo pouco
atropela os dias.
A paixão não pousa;
ela cresce e tanto,
piedade não há!
Peito que bate
e o espanto na garganta
ao lhe ver.
Meu canto de mulher apaixonada,
com tempo pouco
de amor feito
de minutos extraviados.
Na tarde,
almocinhos tenros
com toquezinhos de mão
e olhares cúmplices.
Espera de chegada pouca,
pouco tempo e farto enlevo
alimentando-se do proibido.
Saranzal de desejo sem saciar
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Como é o mercado literário em Mato Grosso?
Essa é a questão. Não existe mercado literário no Mato Grosso. Então, eu acho que talvez a parte mais importante da minha jornada seja essa luta para colaborar na construção do mercado literário. Eu vivo de poesia há 23 anos. Talvez eu tenha ajudado a reinventar eu tenha colaborado na invenção do mercado literário mato grossense. Talvez seja uma vaidade minha acreditar que colaborei. E é preciso que as pessoas percebam que um livro custa o mesmo que uma camiseta, uma blusinha, só que um livro fica para sempre numa estante e transporta o leitor para além de mundos, ao mesmo tempo para dentro de si. Então o livro é uma forma de portal extremamente importante.
Mulher, poeta, presidente da Academia Mato-Grossense de Letras Quando é que você teve consciência da importância de compartilhar a sua arte?
Eu não pensava em compartilhar a minha arte. Eu tinha poesia como uma compulsão e como a primeira vez que eu apresentei minha poesia foi em um festival: Festival Livre de arte e música popular da Universidade Federal do Mato Grosso, e recebi o primeiro e o terceiro lugar. Eu estava desnorteada, não tinha caminho, não tinha nada. Nada estava me conduzindo, nada estava me chamando, nada me pautava. Encontrar a poesia como caminho foi salvação, a coisa mais sagrada que aconteceu na minha vida. Eu não pensei em compartilhar a minha arte, eu me salvei através da escrita, da oralidade, da publicação da minha escrita. Eu sou imensamente grata pelo dom.
A produção literária de cunho feminino ainda encontra obstáculos? Estamos avançando na produção literária escrita por mulheres?
Eu acredito que narrativas e escritas femininas sejam essenciais e a política de editais garante acessibilidade. Não acredito que exista misoginia, mas eu acho que é um processo relevante que mulheres se sintam envolvidas pela possibilidade da escrita. É um caminho árduo porque é como se o tempo fosse muito essencial. O poeta é da lavoura.
A poeta é bordado, é alfaiataria e instalação. Existe um estar em contato profundo consigo mesma, para que se alcance uma poesia que toque quem vai ler. Então eu percebo que a grande dificuldade, de fato, é na tomada de decisão, talvez as mulheres sejam menos estimuladas a tomar a decisão de escolher o caminho. A questão é, enquanto mulheres treinadas para cuidar, para zelar ou pelos relacionamentos estáveis ou pela maternidade, temos dentro de nós ramos de coragem entrelaçados, rumo à decisão de deixar a poesia entrar, a literatura entrar, a narrativa, a prosa nos habitar. Encontrar tempos e alçar voos rumo à condição de escritoras. Eu acho que essa é a grande dificuldade, é a grande questão para escrever frente à estrutura que se tem hoje. É cultural e histórico, mas também é profundamente pessoal.
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Como se me vestisse para Vênus
Chilro
Passarinho, passarinho,
por que canta na manhã?
Será que amou à noite?
Será que ama o dia?
Será que canta pro sol?
Em cada árvore um canto,
vários cantos em um só;
passarinho que me acorda
não me deixando ser só.
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Gostaria de compartilhar algumas palavras com as leitoras e os leitores da Revista Palavra Comum?
Eu quero enviar um abraço, agradecer o convite e colocar-me à disposição.
Muito obrigado pelo seu tempo. Que os seus livros continuem a fazer o seu caminho. Que você continue criando arte!
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Luciene Carvalho é escritora, poeta e diretora de teatro. Publicou Devaneios poéticos: coletânea (EdUFMT, 1994); Teia (Teia 33, 2000); Caderno de caligrafia (Cathedral, 2003); Porto (Instituto Usina, 2005); Conta-gotas (2007); Sumo da lascívia (2007); Aquelarre ou o livro de Madalena (2007); Cururu e siriri do Rio Abaixo (Instituto Usina, 2007); Insânia (Entrelinhas, 2009); e Ladra de flores (2012); Dona (2018); Na pele (2020); Doze contos: interpretando a miragem (2021); Gula d’água (2021), pela Carlini & Caniato; SARANZAL (2024), pela Carlini & Caniato. Algumas destas obras conquistaram prêmios e condecorações. Parte importante do seu trabalho, como declamadora, se faz em shows poéticos em que une figurino, efeitos cênicos e trilhas musicais para oferecer sua poesia viva e colocá-la a serviço da emoção da plateia. Luciene ocupa a cadeira nº 31 da Academia Mato-grossense de Letras, onde atualmente também ocupa o cargo de presidente.
Instagram: https://www.instagram.com/luciene___carvalho
Facebook: https://www.facebook.com/luciene.carvalho.505960
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