Midhi Paixão é a autora de Convém que eu diga: um livro em aberto (Ases da Literatura, 2023)
Para aqueles que não a conhecem, conte-nos um pouco sobre você.
Nasci em Jaguaquara, uma cidadezinha do interior da Bahia, e lá vivi a maior parte dos meus dias, com saídas curtas para tentar a vida em outras localidades e para cursar os estudos de nível superior.
O intervalo fora foi de cerca de sete anos. Finda a graduação, a convite de uma das instituições de ensino da cidade, retornei para lá, onde exerci o Magistério em escola da Rede Privada e em escolas da Rede Pública, como professora de Língua Portuguesa e Literatura. Além do exercício do Magistério, dirigi o Departamento de Cultura, Esporte e Lazer do município por quatro anos.
Mudei-me para Portugal em 2018 e dedico boa parte do meu tempo à arte. Poesia e pintura absorvem- me na maior parcela do período, mas gosto também de sentar ao piano e fazer uns acordes para me acompanhar no canto. Cantar é imprescindível na minha vida, mas é coisa que faço para meu deleite e para fazer algum barulho em casa. Não tenho nenhuma pretensão de qualquer exercício profissional com isto.
Pode dizer-nos o que significa para ti o termo literatura?
Literatura para mim é o espaço ou o lugar de nomear, com graça e com beleza, a experiência humana. São vários os discursos que se valem desta e tentam explicitá-la, compreendê-la, mas apesar da validade de todos eles, quem faz isso com uma beleza que atrai para esse entendimento é a literatura.
Ela lida com duas coisas muito significativas: o humano e a palavra que, para mim, são duas coisas que guardam em si muita sacralidade.
Não consigo ver em toda e qualquer escritura, ainda que versejada, um trabalho literário. Se não há o trabalho pensado da palavra, em sua sonoridade, em sua carga semântica, se não há busca de dizer com beleza, não vejo aí literatura. Literatura é arte de lidar com a palavra na tentativa de captar (eu diria assim) significados da nossa humanidade e dos seus desdobramentos.
Quando começou a sua aventura na escrita?
Desde que me descobri (embora não tivesse exata consciência disso) com a inabilidade para muita interação utilizando a fala, e isto aconteceu na infância.
Eu percebia que não cativava as pessoas pelo que eu falava, que tinha sempre alguém que respondia antes de mim, e que atraia a atenção das pessoas antes que eu conseguisse fazê-lo. Aquilo me angustiava muito porque eu tinha a sensação de estar sempre atrasada em relação a alguma outra criança em casa ou na escola, na igreja, enfim.
Intuitivamente descobri que aquilo tinha a ver com o fato de eu não me expressar falando antes que outro(a) o fizesse. Falava para mim mesma que dá próxima vez conseguiria, ensaiava, mas entristecia-me por quase nunca conseguir. Desisti e fui para o papel fantasiar as situações onde era eu quem me dava bem naquelas situações que eu tanto queria ser a primeira ou ainda que não fosse a primeira, estivesse incluída também.
Aprender a escrever foi para mim equivalente a alma aprender a respirar. Aquilo me acalmou e eu gostei. Mantive sempre meus cadernos com poemas – não era poesia ainda, embora eu achasse que era e me alegrasse em me achar uma Cecília Meireles (risos) – e com minhas histórias que escondia como pudesse para que ninguém descobrisse, lesse e começasse a me criticar pelo que escrevia.
Fiz muito poema, escrevi muita história. Eu amava escrever cartas e desenvolvi cedo o gosto por ler (era outro refúgio) e pela escrita. Na escola, desde a terceira série do ensino primário, chamei a atenção pelos textos de redação, e isso foi para o ensino médio e faculdade. Foi a partir disso que comecei a perceber que tinha um talento para a escrita. Em 2002, uma colega que também escrevia, incentivou-me a mostrar meu texto e organizou comigo uma primeira coletânea que recebeu o título de Tocando Palavras.
Era difícil conciliar a escrita com a jornada de três turnos de trabalho e por isso adiei para anos mais tarde o projeto de novas publicações solo. Participei de algumas coletâneas e só em 2022 foi quando organizei o Convém que eu diga: um livro em aberto.
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Prudência
Bem minha avó dizia: vai dormir, menina,
são oito horas por dia.
Minha avó sabia a hora de todas as coisas:
do cantar do galo à lua que se enchia no céu:
tempo de plantar.
–Quero comer, minha avó!
Essa fome que não passa desde tenra idade.
Fico ali namorando o poeta, babando nele a saliva, sugando-lhe as delícias.
A cabeça dói na manhã do outro dia,
fico zonza e estou grávida.
–Estou grávida, vovó! Vou parir na madrugada.
Dessa hora ela não sabia e deixou-me escapar.
A tentação está ali na esquina
olhando pra mim e eu pra ela.
É um caso de amor proibido, mas não resisto:
compro o livro e piora meu estado.
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Num dia normal, o que é que faz?
Para poder ter o tempo de dedicação à arte, eu organizo minha rotina cuidando primeiro das coisas da casa. Se elas não estiverem acomodadas, interferem muito em meu processo criativo. Então, a parte da manhã, via de regra, faço manutenção de limpeza, cozinho, ponho roupas para lavar, efetuo o pagamento de contas, enfim. À tarde fico livre para leituras, pesquisas em torno da arte, escrita e para a pintura.
Um lugar para se perder?
Feiras de livros. Ando por elas até a exaustão e sinto um prazer imenso em folhear livros, em ver tantas pessoas em torno deles, bem como em conhecer pessoas e fazer trocas interessantes e sair de lá com títulos maravilhosos para rechear minha estante.
Diz-nos algo que adora e algo que detesta.
Amo o silêncio, sobretudo quando preciso dele para conectar-me comigo mesma e com meu processo criativo. Não consigo pensar em meio ao barulho.
Não aprecio a superficialidade espalhafatosa e buliçosa de muitas pessoas.
Na sua experiência, qual é a melhor e a pior coisa de ser uma escritora?
A melhor, para mim é o tempo investido no alimento com o qual nos nutrimos: a leitura. Tenho nisto uma fonte de prazer muito maior que no ato da escrita.
A coisa menos gostosa é a impossibilidade de escrever seja pela falta de inspiração (eu creio nesta) ou por outra falta qualquer que nos tire a condição da escrita.
Alguma escritora que a tenha inspirado?
Temo muito citar nomes, sabe? Temo ser injusta porque todas as vozes das mulheres que li e que leio, são fontes de inspiração para mim.
Talvez seja mais adequado eu citar a escritora que comunicou ao meu coração de forma mais intensa e a quem dediquei mais tempo que é a Adélia Prado. O texto dela é formidável. Mas leio e gosto muito da Hilda Hilst, Ana Cristina César, da Elisa Lucinda… Eu descobri vozes de mulheres negras quando me foram apresentados números dos Cadernos Negros no finalzinho da década de noventa. Pela primeira vez li literatura produzida por este grupo étnico e eu pensei: “puxa! Tem aqui algo totalmente diferente de tudo o que já li. Eu fui bebendo nesta fonte avidamente. Essas vozes contribuíram e contribuem muito, mas muito mesmo para a minha escrita.
Qual é o tema da sua última obra?
Partindo de vivências minhas, faço uma reflexão sobre questões pertinentes à nossa existência enquanto seres de relações.
A relação consigo mesmo, com o outro, com a poesia e com o sagrado são a tônica do Convém Que Eu Diga: Um Livro Em Aberto.
Um gênero que você nunca escreveria?
Creio que ficção cientifica e terror são gêneros nos quais nunca me arriscaria. Penso que para escrever precisamos gostar, pelo menos em alguma medida, de ler o gênero literário ao qual nos dedicaremos para adquirir repertório, para perceber caminhos viáveis para a construção do mesmo. Não sou afeita a nenhum dos dois que citei.
Um conselho para uma nova escritora.
Para aquela que deseja que seu texto tenha vida longa eu diria: leia. Leia muito mais do que escreva, para ter condição de entregar um texto à altura do que a arte requer.
Onde podemos encontrar o seu livro?
O Convém Que Eu Diga: Um Livro Em Aberto pode ser encontrado na Amazon e nas principais plataformas de marketeplace do Brasil. Sempre tenho comigo alguns exemplares também, porque algumas pessoas desejam fazer a aquisição com um autógrafo que tenho muito prazer em dar.
Além de escrever, tem outros projetos futuros que gostaria de realizar?
Citei anteriormente o despertar para a pintura e este projeto já tem ganhado algum corpo. Venho estudando sobre esta linguagem artística com bastante afinco. Já fiz uma primeira exposição em uma feira, na localidade onde moro aqui em Portugal, e pretendo em 2024 fazer algumas exposições.
Uma mensagem para quem está a ler a entrevista.
Antes da mensagem para o público leitor, que creio ser diverso, gostaria de agradecer à Carla Nepomuceno o convite para esta entrevista neste que é um espaço frequentado por gente gabaritada e com um caminho na literatura e nas artes plásticas bem mais consolidado que o meu. Sinto-me muito honrada com a oportunidade.
Eu diria a todas as pessoas, até mesmo àquelas para quem a leitura de textos literários ainda não faz sentido, que insistam na leitura deles. Pela necessidade que temos de alargamento da nossa humanidade. Para quem diz não estar habituado(a) à leitura talvez seja bom considerar que pode não ter sido apresentado ou descoberto por si mesmo o gênero que tem a ver com o que ela pode gostar. Mas é importante buscá-lo com a mesma consciência com que se busca alimentos para o corpo. A alma precisa ser nutrida para não ficar tísica.
E também diria que a experiência da escrita não é para uns poucos privilegiados. Todo mundo pode e creio que até deve, em alguma medida, escrever. É um exercício muito bom para a pessoa em vários aspectos. Publicar ou não tais escritos é uma decisão que a pessoa tomará a posteriori, mas ter sua página para registrar aquilo que venha a partir das vivências e das leituras é bom e é importante.
Do Café com Português e da Palavra Comum – revista galega de artes e letras desejamos profundamente que você continue a escrever e falar sobre as suas/as nossas inquietações e vivências.
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Midhi Paixão (cf. IG da autora) nasceu em Jaguaquara (Bahia) em 1961. É Graduada em Letras Vernáculas pela UEFS e Pós-Graduada em Estudos Literários pela mesma universidade. Poeta, escritora e artista plástica, vive atualmente em Portugal, depois de atuar como educadora e ativista cultural em sua cidade de origem.
É autora dos livros de poesias Tocando Palavras (2002) e Convém Que Eu Diga:Um Livro Em Aberto ( 2022). Tem poesias publicadas em várias antologias no Brasil e em Portugal.
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