(…) Como fazer duas vezes melhor,
se você tá pelo menos cem vezes atrasado
pela escravidão, pela história,
pelo preconceito, pelos traumas,
pelas psicoses, por tudo que aconteceu?
Duas vezes melhor como?
A vida é desafio – Racionais Mc´s
Vinte conto o dia/ O sol no globo.
A chuva na moringa/ Dava pro café.
Dava pra coxinha/ Leite-moça, pão, farinha.
Daria pra motocicleta/ Um dia.
Avózinha na janela/ Cuidava de sua vida.
Ganhava 70 paus/ O dia de faxina.
E a gente sonhava ser/ Entregador de pizza.
Contratado – Dinha
A maré cheia passou. Contas e comidas cada vez mais caras. Convites e leitores cada vez mais distantes. Sem trampo e sem grana. Qual a novidade? Quem vive tranquilo numa época dessas? Se pensar que sobrevivemos aos anos 80 e 90, tiramos de letra, mas isso é nivelar por baixo, merecemos mais.
Sempre soube das fases minguadas, quem é da parada sabe, mas a estiagem promete ser brava daqui pra frente. Como continuar trabalhando, estudando e escrevendo com tranquilidade se o peito fica amarrando frio pela situação? Antes de escrever refiz meu currículo de atendente de telemarketing e ajudante geral, que não utilizo há quase dez anos, pois creio que agora esta seja a única saída de emergência. Ainda que não esteja fácil, mesmo se oferecendo pra ganhar um salário miserê.
Não parei com a literatura, longe disso, até porque mal comecei, também não vou deixar de trabalhar com arte, mas pra garantir o mínimo e receber em dia, tento seguir na lida antiga. Desanimei ainda mais quando li um site graúdo divulgando uma entrevista com o Cafu, o capitão do penta, assim: “Morei em barraco. É fácil se adaptar a qualquer situação”, isso me parece um: “Olha, vocês que sempre comem da banda podre (como diria Plínio Marcos), vão se adaptar facilmente a joça quem vem por aí”.
Em outra mensagem endinheirada, o slogan sugere: “Tempos difíceis vão sempre existir, mas não existirá um dia se quer sem alegria, é só você querer olhar pra ela, a alegria tá aí, dê uma mordida”. Se não fosse pelo risco da conspiração, diria que é uma propaganda governamental pós-moderna (depois dessa achei outras), devidamente privatizada, mas o que há de errado num inofensivo chocolatinho, né?
Enquanto isso, as aulas da pequena começaram e pra ela beber e comer sem crise, a arte não tá pagando. Grana curta, cidade vendida, cultura no gelo, Bolsonaro crescendo nas pesquisas e baixa perspectiva de inversão, eis os legados pós Copa e Olimpíadas. Por hora, quem quiser combinar de ir entregar uns currículos no centro, demorô! Tô concentrado nisso.
Sem pessimismo, a gente trampa todo dia, faz acontecer e pra ter o mínimo tem que fazer o corre no naipe daquele rap “não basta ser dez, seja preto mil, seja preta mil”, mas o rap também ensina que isso pode ser xaveco pra manter a gente correndo na esteira. É o pesadelo rejuvenescido, que remete há vinte anos, quando meu sonho era ser jogador de bola, como quase ninguém foi, depois pensei em ir pro arrebento, como os muitos que se vão, ou ser entregador de pizza, como quase todos são, e atingir o ápice com o kit crachá-mesa-cadeira. Bom dia senhor, com quem eu falo?
Se o romance que escrevi não vingar, os projetos ficarem congelados e as contratações sumirem, logo nos encontraremos. Desta vez não recitarei poemas. Vou ligar oferecendo um pacote de internet ou fazendo cobranças sem noção. Deixarei os versos de lado pra confirmar os três primeiros dígitos do seu CPF e avisar que esta ligação está sendo gravada. E caso queira anotar o protocolo desta crônica, continue na linha. Obrigado!
Michel Yakini é escritor e produtor cultural.
NOTA: a foto do autor é de Sonia Bischain.
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