O vaso de orquídeas foi presente do estimado casal de amigos.
Costumavam marcar datas especiais com essa cortesia.
Chegara o tempo da caída das flores. Regas diárias, adubos com casca de ovo bem socadinha no pilão de pedra, troca de vaso: elas foram para um outro maior, feito de fibra de côco. Suas raízes se espraiaram. Os botões lentamente se formaram e a mulher fotografou a imagem que chamou de “o fio da amizade”. Era uma haste alongada, com sementes de flor nas extremidades, fechadas, maturando explosões.
Numa das manhãs, ao abrir a porta da sacada de seu quarto de dormir e botar os olhos de cuidados nas plantas ‒ suculenta, cacto, comigo-ninguém-pode, açafrão, dracena, zamioculca ‒, observou a primeira flor aberta, de repente, depois da silenciosa transformação noturna.
Certa tarde, porém, o espanto e a tristeza arrebataram seu coração, ao ver o galho quebrado.
*
A orquídea, ao sabor do tempo, do zelo de sua admiradora, das regas, do sol em luz e calor, do vento e mesmo da poeira urbana, refez-se por uma nova haste. Era um aprendizado diário para a mulher que se considerava mãe e filha daquelas flores. Filha por ser pequena diante da Mãe Natureza; mãe por realizar parte de uma rotina cuidadora.
*
Em um novo alvorecer, ela decide levantar a haste e escorá-la em um apoio retilíneo vertical. Como a força das mãos não fosse bem dosada, a haste se parte, mas não completamente, a ponto de se desprender. Ela fica, com sua ferida vegetal exposta, ainda contínua ao todo, ao caule, às raízes. A mulher prefere não tentar justapor as partes acidentalmente separadas e deixa estar a sabedoria natural para homeostase daquele ser vivo.
Espera.
Começa a borrifar o local do machucado, tomando distância para que os respingos d´água o atinjam levemente.
Assim, cotidianamente, sorvendo, talvez com esforço, os nutrientes, a flor sobrevive.
Em uma das voltas da Terra, a mulher nota brotos ao longo daquela ofendida linha condutora de vida.
Elas queriam se abrir.
Dia a dia, um pouco acontecia.
O inesperado.
*
E abre os olhos: uma. Abrem duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove.
Elas florescem.
Lindas.
À beleza assombrosa, vivaz.
*
A nebulosidade começa a aumentar pela aproximação da frente fria […]. As rajadas de vento devem ser intensas a partir da tarde de hoje, em torno de 80 km/h […]
A chuva chegou com pancadas moderadas a fortes. O tempo será marcado pelo predomínio de grande volume de chuva, 144mm nas últimas horas.
De sua cama ela ouve o barulho do aguaceiro e da ventania, que mais parece um tufão.
Ao despertar, abre a cortina, vai até a sacada, onde está seu pequeno jardim, e descobre o florido ramo fraturado pela força do fenômeno.
Consolada a si mesma, a humana pega daquela simetria nas mãos, à qual faltariam dois renovos a desabrochar, constata que eles não o farão e busca um vaso pela casa. Na falta deste ‒ a boca do que está no banheiro, contendo duas flores produzidas por artesãs, é muito pequena ‒, coloca-a em uma garrafa de cerveja com água fresca.
Repousa o arranjo sobre a mesa da sala.
**
Juliana Galvão (1976) é brasileira de Minas Gerais. Herdou da mãe o gosto pela escrita. Aprofundando esse interesse, tornou-se profissional de Letras e mestra em Estudos Literários. A sua experiência com edição de texto ‒ preparação e revisão ‒ dura há mais de dez anos. Lançou os livros Pedraria (poesia, Editora Patuá) e Pé de Pipa (imagem, em coautoria com Maurizio Manzo, Crivo Editorial). Teve poemas publicados nas revistas Acrobata e Mallarmargens. Desenvolve o projeto independente online Encontros de escrita autoral, iniciado neste ano de 2021.
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