É a minha farmácia. É tanto a minha farmácia como tendo a ir sempre à mesma livraria do meu bairro onde já me conhecem desde os quatro anos. Ou à mesma tabacaria. Ou ao mesmo café, à mesma padaria, à mesma frutaria, ao mesmo sapateiro. Sim, peço sempre o peixe à mesma peixeira. Até a loja do chinês é sempre a mesma. Sou homem de lealdades, cuido-as tão bem como a minha horta, o que é bastante saudável. Poupo às cercanias a minha instabilidade e indecisões constantes. Há essa frase comum na gíria futebolística que diz equipa que ganha não se mexe, sei aplicá-la desde que não me chateiem muito. É necessária muita incompetência, displicência e arrogância para me fazerem ter vontade de trocar de posto. O que não é assim tão raro. Há uns anos, por exemplo, no Café Lisboa, o sabor do café estava outro, piorara vertiginosamente. Enfim, talvez os lotes não fossem assim tão maus, que a nova máquina última geração fosse mesmo a melhor do mundo, admito até, no limite, que pudesse ser um tanto ou quanto exagero nosso, a verdade é que o café se deteriorara, e o senhor Fernandes só abanava a cabeça, a teimar que não, sem empatia, saturniano ao cubo, unha dura, a deitar fora aquela magnífica bica que era o às de trunfo do estabelecimento. Moral da história: eu e uns quantos tantos dissemos adeus até sempre ou nunca mais. Igualmente, desisti de frequentar a Tabacaria Branco de um momento para o outro, depois de deixarem de ter ao sábado o suplemento cultural do ABC, com a desculpa de que já não enviam. Se eu já não sou grande fã do imprevisível, com atenuantes-toscos a coisa piora sobremaneira. E se eu dissesse ao homem que para mim o ABC é repelente, que aquilo só vale pelo Cultural, de longe o melhor suplemento de cultura semanal de qualquer diário da Península Ibérica? Então vai subestimar os meus gostos e valores? Não vale responder que há mais tabacarias neste bairro. Melhor esperar sentado. Ou de pé, como estou aqui agora, a tirar notas, que remédio. A Dra. Fernanda Almada pode até dar o nome a esta farmácia, só que é uma completa incapaz a lidar com a matraca do costume, indiferente à fila que se adensa. Hoje estou com azar, agora é roer o osso até ao fim. Também não quero ser rude, dar meia-volta e ir embora. Por outra, acho que me devo castigar um pouco. Sei bem que só venho aqui por preguiça. Até a namorada se ri de mim: mas tu ainda vais à Farmácia Almada? Sim, porque é cómodo, é ao lado de casa. Ainda não desisti, mesmo que os três funcionários que alternam tendam a atender-nos com a mesma atitude com que normalmente olhamos uma parede branca, neutralidade essa cujo único arquétipo possível é o número zero. A ver os navios passar, navegando para a outra farmácia que não se compara, que se inteira dos problemas, que nos põe logo melhor quando saímos da porta por onde entrámos cheios de dores de cabeça, a chocar a gripe, ou com uma valente dor de dentes. Comparar esta com aquela farmácia em Serpa onde vive a minha mãe. Como não comparar? A de Serpa, enorme, de um absurdo tamanho para uma farmácia em Serpa, cheia de motivos Art Nouveau, sobretudo a porta a lembrar algumas farmácias francesas, até os candeeiros de cristal nos remetem para Paris. Depois o atendimento amabilíssimo, rápido, a rimar com a frescura do ar condicionado.
“Vivemos num mundo de Indústria e lavo daqui as minhas mãos com o anti-inflamatório e o paracetamol”
Os da terra conhecem bem o proprietário, que não está lá sempre por ter outra farmácia na Amadora. Pela forma como o descrevem, teremos ali, como se diz em Espanha, um homem de curro, um lutador sol a sol. Diz que nunca quis entrar nos negócios do pai, homem riquíssimo, com uns não sei quantos milhares de hectares de propriedade. Cada um é como cada qual. Certa vez, mais propriamente em Libourne, perto de Bordéus, reparei num outro Diretor. Tinha mesmo de notar, paralelo à fila de clientes, a criatura, metro e setenta, nos seus quarentas, barba rala, magro-atlético, filmava um vídeo para o telemóvel, ia haver uma conferência de farmacêuticos que estava quase, quase, precisamente em Libourne. Às tantas, talvez para não parecer mal, voltou-se para nós a pedir desculpa, que era para o Instagram da farmácia, a Pharmacie Tours. Conseguiu mais publicidade, claro, e eu sou um dos seus cinco mil seguidores. Chama-se Fabien Bonnot. Posta a toda a hora. Ele é ele, contagiante, surfando as ondas de Biarritz. Ele é ele, vibrante, a escalar os Pirinéus. Ele é ele, competitivo, a jogar ténis com os amigos. Ele é ele, todo contente, a levar os filhos às camadas jovens do Bordéus, o famoso Football Club des Girondins de Bordeaux. Calculo que seja feliz, faz por isso, pelo menos diverte-se. Podia ser pior. Lembro-me quando vivi em Cascais, na zona alta, longe do centro, comércio nulo, de ir dar sempre à mesma farmácia. Detestava lá ir. Custava-me ver a equipa atormentada, cada mês, cada funcionário, só o chefe se mantinha. O nevrótico no ar, na respiração do lugar, na voz ríspida, no trato. Tratava tão mal os subordinados que todos desertavam até serem substituídos por outros que, já se sabia, desertariam num piscar de olho. É preciso de vez admitir que existem criaturas tão nocivas que muitos acabam por ter mesmo de ir parar a uma farmácia. No meio de tanta toxidade, o tédio aqui é a serenidade em essência. E a senhora, voilà, eureka, está já a pagar a conta. Agora é só ver se não fala mais nada enquanto dá meia volta até à porta e adeus. Mas isto ainda não acabou, o outro dia foram uns bons vinte minutos e o filho em Londres e a prima doente e Deus nosso senhor e o diabo a sete… Sim, a farmácia também é lugar de misericórdia. E de lucros atómicos atreitos ao Big Money. Mas aí precisávamos falar dos lucros do Vaticano. Vivemos num mundo de Indústria e lavo daqui as minhas mãos com o anti-inflamatório e o paracetamol.
Pedro Góis Nogueira nasceu em Lisboa em 1974 e vive há um ano na Galiza, em Ourense, onde trabalha como freelancer. Tem dois livros publicados, ambos na editora Letras Paralelas, um de poemas (Estrada dos Prazeres), o outro de contos (Praia Lontano). Trabalhou em viagens, fez jornalismo desportivo, experimentou a rádio e o cinema. Pode ser lido quotidianamente no blogue Desertações.
fotografia de capa por Marcos Ferreiro
You might also like
More from Narrativa
De Castitate Mentale 2/2 | ©Frantz Ferentz
De Castitate Mentale 2/2 | Microcontos de Frantz Ferentz
De Castitate Mentale 1/2 | ©Frantz Ferentz
De Castitate Mentale 1/2 | Três microcontos de Frantz Ferentz