Era no tempo em que na Europa vivíamos em bairros operários.
Uma mulher, a minha mãe, filha de um homem que morreu a construir uma casa na baixa da cidade,
ganha a vida bordando jogos de cama para meninas casadeiras.
Vejo-a agora, esfregando as mãos com um limão aberto.
É como um rito iniciático,
tirar das mãos o cheiro do peixe antes de tocar a imensa brancura dos lenços de Júvia,
a fábrica em que as mulheres da comarca se juntavam para tecer em aquele século que chamaram das luzes,
quando a cidade cresceu para além das muralhas.
A máquina com que a minha mãe borda foi comprada com dinheiro que a madrinha ganhou na América.
Depois de a guerra acabar, Antónia atravessou o mar para tirar a fome e agrandar a casa.
Nunca voltou.
A menina que lê o manual da escola ao pé da máquina sou eu.
É uma história sobre uma rainha de Espanha que levou aos índios a fé verdadeira.
Lá fora florescem as camélias.
A camélia cura a melancolia dos amores desgraçados.
Veio do Japão nas naus dos navegantes portugueses.
É a Galiza. É fevereiro.
No porto os homens contam histórias da batalha dos corpos contra o mar da Terra Nova. E contra o medo.
A minha mãe não quis que ganhasse a vida com ofício de mãos.
Estudei na universidade. Agora leciono línguas num país estrangeiro, à beira do mesmo Atlântico.
Ensino as minhas alunas a conjugarem verbos em passado.
(As leis da gramática são inflexíveis).
Hoje fazem um exame de história, dessa que conta que a ordem do mundo veio de Roma.
Na rádio falam da estratégia do governo para o mar.
Na Europa já não tecem as mulheres nas fábricas
e ninguém sabe quem domina hoje o império.
Mas algo chama por nós desde as profundezas no oceano.
Eu continuo aqui, com a pura necessidade de me vestir para não sentir frio
e este hábito da alma que de nada me separa,
memória do ofício herdado de coser retalhos para fazer a história.
Sei que não existem os outros,
ainda que não consiga demonstrá-lo,
apenas águas e fios que nos atravessam,
esses muitos nomes da vida
e o eterno presente do que floresce.
Ou é onda.
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