Questões filosóficas surgem sempre quando se fala ou se pensa sobre o homem. A literatura não estará a parte, sem o homem ela não existe. O homem no centro, o grande personagem que dá à luz todas as peripécias e os problemas existenciais.
Insituável e transfronteira remete-nos à ideia de localização.
O prefixo trans provém do latim e quer dizer além de, para além. Fronteira quer dizer linha, limite, divisão. Insituável; aquilo que não tem localização, não encontrável. Transfronteira seria aquilo que vai para além do limite estabelecido.
Espaços existentes e quebrados ou ainda o contrário. Força bruta que o ser humano emana: a estratégia do sopro solitário.
Fisicamente o homem se situa nos continentes. Por outro lado, ele está nas partículas indivisíveis da criação. É uma criação criada para se criar. Nesse processo entra uma personagem em acção: a poesia. Ela não tem situação, é a situação.
A poesia é o género mais ficcional, a única ficção que borda e aborda o coração do homem.
Ou a poesia é uma parede que desmonta o homem sem afiliações, o insituável das transfronteiras é a visão. Perder a visão para voltar a ver. Visão significa a habilidade de identificar e interpretar a luz. Neste contexto luz é conhecimento. Este saber que veio não através do ensino, mas por meio de uma exposição involuntária e inconsciente. Os poetas eram chamados de divinos, adivinhos, de divinari do latim, adivinhar ou prever, aquele que pode percorrer no tempo destrincando caminhos e possibilidades. Tal previsão nem sempre resulta: há o fracasso, a dor e a alternativa de se saber que a retina é torta por natureza e, sem ela o objecto poético não se faria. Mas também podíamos pensar nessa retina recta, quando não há encantamento. A matéria da visão é o descomprometimento social e o compromisso com o omisso, a abundância que se tornou agora estrangeira para nós.
O espírito esquecido de si porque já dentro da visão, elabora linguagens. Transborda nos olhos da imaginação e dá luz à raça humana na sua versão mais real e ficcional.
– Quem és tu para ser excepção? Pergunto-me isto sucessivas vezes. E em todas, lembro de alguns poetas a responder: “- Quando escrevo não penso no leitor.” Ora, é uma resposta poderosa apesar de parecer egoísta no início. Ela acaba por ser congregadora e generalizadora. Das respostas mais humanistas que já ouvi. Não pensar no outro é pensar no outro.
Penso: como poderia ser eu única, havendo lá fora outras solidões.
Lembra-me aquela ideia abstrata mas nítida quando em leitura: viajar por via de um livro. Ir a locais desconhecidos, mas agora não nos concretamente planetários, afinal literatura é cavar. Dizia o outro, cavar e fracassar. O mistério é gasoso, o prazer intermitente. Quando escrevemos, afinal, estamos sempre a fracassar.
Quando se lê um conto sobre Moçambique, não se vai até Moçambique. No entanto, temos essa partida, que motora a grande viagem existencial. Li romances russos e mais fiquei com a impressão de que a Rússia era um lugar escondido em mim, ou que eu sou a Rússia noutro nome.
Transfronteira é para mim essa automática ligação natural e espiritual entre as coisas. Uma consciência da infância e da velhice sem nunca se ter sido adulto.
A alma é o insituável das transfronteiras.
*
Notas: Este texto é o contributo de Hirondina Joshua no 9º Raias Poéticas. Agora com desenho de Newton Joaneth.
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