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O SEU CORAÇÃO É UMA GAIOLA COM PÁSSAROS
O seu coração é uma gaiola com pássaros
surpreende por ainda estar vivo, batendo
assim
no escuro, com essas asas presas
trancadas em celas de papel
abandonadas ao abismo de um corpo
que já não existe mais.
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LÍQUIDO INSTINTIVO
Engoli o líquido instintivo da sua verdade.
Temperei as peras secas para as nossas refeições diurnas.
Imaginei pântanos e desertos onde havia águas inocentes.
Passei anos cevando o pão de minhas tristezas
enquanto a primavera não cessava suas flores.
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O PÃO DE CENTEIO DE OSCAR WILDE
No cárcere de Reading, Oscar Wilde
escreveu na memória o pássaro
em flagelo
com as asas quebradas
os olhos com furos de pistola
as vísceras dobradas no canto da gaveta
os pés amputados pela navalha
da guilhotina.
Na prisão, havia túmulos de horror onde nasceram flores de pelúcia.
Havia sangue pisado debaixo da língua, líquidos e
lágrimas nos arrepios da morte.
Aos domingos, atrás das grades,
nas refeições matinais,
o pão de centeio trazia o verso do perdão.
Oscar Wilde lambia os farelos caídos sobre o chão
com sua língua de fogo.
Na cela, ao sangrar a fome na garganta,
o coração de pedra escreveu as leis eternas
da humanidade
num caderno de vidro
sobre os homens que choram
sobre os homens que matam o que amam.
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CULPA
Riscas um fósforo
para acenderes a flâmula do remorso.
Répteis vibram no escuro ainda?
Ou silenciaram-se no outono além?
No peito que arde nas cordas do tempo
a culpa é um punhal cravado no rosto de um girassol.
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AMOR DE ÁRVORES
Se as cigarras se perdem de amor pelas árvores;
E o escuro se umedeça em seu corpo.
Manoel de Barros
As árvores, pilares de um sonho sobre meu rosto?
Torres que caminham comigo, largas, aquelas mais altas
carregam no tronco a sina da castidade antiga.
Os galhos quase nada definidos seguem os ventos
reascendem o humor do dia
vivificam os lábios e as retinas.
No caule, guardam paciências e tonéis de esperança.
Nenhum orgulho ressuscitado ainda.
Nada sei sobre o esquecimento destes terraços
aéreos
que formam esculturas raras
expandindo-se sobre telhados
calçadas e sobre as águas
onde mora um barco de asas
que é o meu esconderijo.
Caladas, deitam em solidão sobre o meu ombro.
Um quase nada de luz sobressalta a copa verde no alto.
Ingênuas, levantam os braços em renúncias:
− cansaram-se do hálito das foices e do fogo.
Num gesto de súplica, tocam-me pelas vestes
do afeto:
− neste instante em que uns espaços de luz rompem a treva
um amor invisível rouba meu corpo:
sob esta penugem verde
de folhas e frutos
meu rosto floresce.
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Mírian Freitas é mineira, escritora. Reside em Juiz de Fora, MG (Brasil). Doutora em Literatura Comparada (UFF), lecionou por anos nos EUA, em Massachusetts. Atualmente é professora do Núcleo de Línguas do IFSUDESTE/JF. Publicou Intimidade vasculhada (narrativas- 7Letras), Exílios naufrágios e outras passagens (poemas- Patuá), Caio Fernando Abreu: Uma poética da alteridade e da identidade (Ensaio ilustrado- CRV), Quando éramos pássaros e outros poemas abissais (poemas- Penalux), Mosaico – Narrativas curtas (Sempre-viva editorial), A memória é uma oficina de ossos (Urutau). Possui publicações diversas em antologias no Brasil e Portugal (Leiria e Lisboa) e nas revistas CULT, CP Literatura, Palavra Comum, Subversa, Mallarmargens, Acrobata, Ruído Manifesto, Desvario, Arribação, Tamarina, Arara, Diversos Afins e outras.
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